segunda-feira, 15 de junho de 2020

Escrita ao desafio: entre meninos



Diferente

(escreve Vítor Encarnação)

Dentro de mim nunca sou o que os outros veem, os espelhos não me refletem, as fotografias não me mostram, dentro de mim, no conluio que eu arranjei entre mim e a idade, vejo-me sempre de outra forma, os meus olhos veem o que querem, não sou dono deles, eu minto-lhes e eles mentem-me, estão cegos de realidade, estão vazios de aceitação, enganam-me, eu peço-lhes para eles me enganarem, e eles fazem que não veem o esboroar do tempo, inventam que não o veem a passar e a deixar rugas e cabelos brancos e cansaços e por causa de uma vida a verem-me todos os dias, os meus olhos estão viciados em mim, eu sou o menino dos meus olhos. Dentro de mim sou sempre mais novo, sou eterno, parece-me que não hei de acabar nunca, não conheço mais nada, não me conheço de outra maneira, há anos que trago comigo este corpo, este pensamento, estas cicatrizes, estes ossos, estas mãos, esta pele, esta boca, estes olhos mentirosos, tudo o que tenho por dentro, um coração que nunca vi. Ter-me-ão crescido as mãos, os ossos e o pensamento, ter-se-me-á rasgado a pele, fechado a boca, partido o coração, o tempo terá andado teimoso de volta de mim, tentando pôr-me luz nos olhos, mas eu vejo-me ainda moço, vejo-me como dantes, vejo-me como fui, vejo-me incapaz de me ver como dizem que sou agora. Se eu pudesse, os meus olhos é que tinham razão.


Igual

(escreve Fernanda Cunha)

A menina dos meus olhos surpreendeu-se com a confissão que acabou de ler e por momentos receou que a sua meninice não fosse verdadeira, mas possível resultado de um conluio com a mulher que a olha agora através do espelho. Teriam elas o mesmo desacordo sobre o vagar do tempo que faz crescer a pele, endurece as unhas, inflama os ossos e branqueia o cabelo? Conhecem-se desde pequenas, não escondem segredos uma da outra, mas a verdade é que quando se encontram demoradamente, a menina descobre novidades no corpo da mulher. Às vezes até por dentro, no coração que não se vê. Nisso aquele menino tem razão. A menina dos meus olhos aproveitou o facto de estarmos frente a frente e perguntou-me se vivíamos a ilusão combinada de ser meninas. Respondi-lhe que não há mentira na menina dos olhos. Que olhasse bem de frente e procurasse rugas em si. A menina dos olhos não tem rugas. O tempo não a envelheceu, continua a mesma menina. E que também eu, feita mulher, sou menina ainda. As marcas do tempo no meu corpo, essas sim, não são verdadeiras, são fruto da imaginação, pura ficção. São histórias grafadas na pele. Qualquer parecença com a realidade é pura ironia, pois o tempo, todos sabemos, tem lá as suas manhas. Engana bem.


(Maio/2020)

domingo, 14 de junho de 2020

Escrita ao desafio: a cada destempo o seu sforzato


Destempo
(escreve Vítor Encarnação) 

Quando saiu do estúdio tinha a certeza que as fotografias não eram dele. Aliás, desconfiou logo da forma demasiado adulta como o trataram quando entrou na loja. Tinha ido sozinho. Enquanto caminhava embevecido pelas ruas sentia-se orgulhoso da sua autonomia e da responsabilidade que a mãe lhe dera em ir fazer o governo de tirar fotografias para o bilhete de identidade. Mirou-se ao espelho. Vestia calções de fazenda, camisa florida abotoada até ao pescoço, suspensórios, meia branca e sapatos afivelados de verniz. Olhe em frente. Não se mexa agora. Perfeito. Vamos tirar umas quantas para podermos escolher. Já está. Encostado ao balcão, com a nota de cem escudos dobrada em quatro e apertada na palma da mão direita, olhava para o desfile de fotografias daquele homem à espera que aparecessem as suas. Sentia uma enorme vergonha. Não era merecedor da confiança que a mãe tinha depositado nele. Falhara na primeira tarefa que lhe fora pedida e agora não era capaz de resolver a situação. Era um moço metido nuns calções e apenas os suspensórios lhe seguravam os olhos para não chorar. Como é que ia contar à mãe que gastara o dinheiro e levava as fotografias de um homem? Ligou o carro, mas antes de arrancar desviou o olhar da cara que lhe aparecia no espelho retrovisor.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
Sforzato
(responde Fernanda Cunha)

Tenho para mim que o destempo fixado em papel fotossensível 35 por 45mm, não o foi por distracção do fotografado, que se imobilizou correctamente diante da objectiva, vestido, penteado e calçado a rigor, ou por inaptidão do fotógrafo, que seguiu à risca o protocolo dos sensíveis sais de prata. Antes, terá sido matreirice da própria máquina fotográfica, que brinca com o tempo como ninguém ou coisa nenhuma, deslocando-o de trás para diante ou vice-versa, bastando-lhe uma piscadela de olho. Mas mais que isso, as máquinas fotográficas fixam a luz, a ambição de qualquer filósofo, e trazem a verdade às mãos espantadas de quem é fotografado em pose séria, tipo passe. Formato que não admite a camisa infantil, os calções de rapazola e os suspensórios que seguram a infância, deixando nu o jovem adulto. As máquinas fotográficas são especialistas em contratempo e sempre me pareceram dadas ao sentido crítico e humor subtil. Não admira que nos ponham nervosos no momento do disparo.


Junho/2020