segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Revolução dos nomes (Fundação O Cerro, S. Luís, 19/ Nov./ 2022)

 



[Comunicação feita na Fundação O Cerro, São Luís, Alentejo, a propósito do livro «A paisagem e as palavras que lá estão - Levantado do Chão, um romance político», no dia 19 de Novembro de 2022]


  

Agradeço o convite à Fundação O Cerro, na pessoa do Silvestre Martins, e também a presença de todos vós.

 É um privilégio estar aqui hoje convosco, integrar este painel de escritores, declamadores e cantadores, no Alentejo, lugar de resistência e de poesia, com o propósito de falar sobre Levantado do Chão, de José Saramago, um romance que se cruza com a realidade alentejana dos primeiros 75 anos do século XX, e nos revela a crescente consciencialização política do povo alentejano, que se atreveu a levantar do chão, da animalidade, para conquistar um lugar no mundo e a sua própria humanidade. Levantado do Chão é a história de um milagre, como adiante se justificará.

A vós me junto na qualidade de leitora, que busca na obra literária perspectivas diferentes da vida humana e memórias de histórias reais passadas; e que busca, na obra filosófica, as respostas para as nossas preocupações mais prementes, nomeadamente as que resultam da crescente crise civilizacional que vivemos hoje. Ambas, Literatura Filosofia, quase se tocam e, por vezes, confundem-se, pois alguns textos filosóficos, pela sua beleza, quase parecem literários e alguns textos literários, pela sua profundidade, são claramente filosóficos, como é o caso da obra de José Saramago. Literatura e Filosofia têm em comum a palavra.

É a palavra que permite a memória e possibilita a novidade, ambas fundamentais na história evolutiva humana. E isto foi muito bem entendido por Saramago, quando em Levantado do Chão, o seu primeiro romance de projecção literária, oralizou a escrita. Fê-lo, cruzando os discursos directo e indirecto na forma típica do falar alentejano, enriquecendo-a com o imenso léxico destes lugares e utilizando as parábolas, metáforas, alegorias, sarcasmo e o humor, sem qualquer poupança. Até nos silêncios de Levantado do Chão se sente o respirar do Alentejo. 

Sem pudor, Saramago mandou às urtigas a pontuação convencional e fez da oralidade alentejana o seu próprio estilo literário, como se quisesse estar de viva voz com o leitor, envolvendo-o também no diálogo com as personagens, e justifica: cada palavra foi escrita para ser dita, para sair da boca do leitor, «porque aí soa e vive completamente».

Sobre o estilo literário de Saramago, Juan Manuel de Prada disse o seguinte: “Nesse estilo que é forma e fundo ao mesmo tempo, música interior e fluxo sustenido da primeira à última linha, reside a principal singularidade de uma obra que exerce sobre nós o mesmo poder de convicção da melhor poesia”.

Estamos perante um estilo literário único, que para além do enorme poder de sedução, tem também o poder de sugestão. A sua complexidade e profundidade são um permanente convite para ir mais além do que está explícito, para ler as entrelinhas.

Autorizados que estamos a utilizar a nossa própria imaginação e a fazer a nossa própria leitura, uma delas poderá ser a seguinte: 

O número 33 é aplicado a uma série de circunstâncias diferentes, ao longo do livro: a) o livro é composto por 33 capítulos não numerados e sem título; b) Manuel Espada (que se casou com Gracinda) teve «trinta e três razões» para o bom acolhimento na família Mau-Tempo; c) por altura da transição da monarquia para a república houve manifestações por melhor salário e acabaram presos 33 camponeses; d) lá mais para diante, quando o povo começa a organizar-se, ganham coragem e exigem uma jorna de trinta e três escudos. Para mim, o número 33 transportou-me para a idade de Jesus Cristo, quando foi crucificado e tentei perceber se teria razão.

Na verdade, muitos dos aspectos da história bíblica estão presentes em Levantado do Chão, com maior expressão no nascimento de Maria Adelaide. É um claro sinal da admiração literária e política que Saramago tem pelo texto sagrado. Ao estabelecer uma relação entre o nascimento de Maria Adelaide e de Jesus Cristo, Saramago transforma o conto humano em conto sagrado e vice-versa. Mas não se fica apenas pelo nascimento de Maria Adelaide. João Mau-Tempo partilha com Jesus Cristo a pobreza, a injustiça social, a prepotência dos poderosos e a tonalidade clara dos olhos; Germano Vidigal partilha com Jesus Cristo a paixão (via sacra); e os homens que andam pelo latifúndio, em encontros clandestinos, mantendo grandes conversações, levando papéis e decisões, são comparados a apóstolos.

Humanizado o texto bíblico, torna-se mais fácil interpretar a actividade de Jesus numa perspectiva política. Jesus Cristo foi líder de um pequeno grupo de seguidores, empenhados em desafiar as autoridades através da palavra. Foi, nesta perspectiva, um homem político, a quem são reconhecidas as influências da política grega originária, nomeadamente a capacidade persuasiva do discurso. Através da prédica, Jesus e os seus apóstolos acreditavam ser possível o milagre. 

O milagre, que tem um significado puramente político e jamais religioso, é, tão-somente, a possibilidade de um novo começo, de algo imprevisível que interrompa o decurso dos acontecimentos históricos a favor do colectivo. Como o nascimento de uma criança ou como uma revolução, por exemplo. O número trinta e três não aparece por acaso. Acho que Saramago se diverte neste jogo.

O primeiro capítulo é inteiramente dedicado à paisagem. O narrador faz-nos olhar para a sua imensidão. Esse olhar sublime de Saramago transporta-nos para o campo do grandioso e do inefável, preparando-nos para o carácter mítico e épico da história que está prestes a começar. Ainda no primeiro parágrafo do romance, o escritor deixa antever toda a representação simbólica que atribuirá à paisagem quando, à imensidão espacial e temporal, é acrescentada outra cor que a paisagem trabalhada não revela: o vermelho de «sangue sangrado» (11), simbolizando o conflito de classes, o tema de fundo de Levantado do Chão.

Fazendo coincidir a realidade com a ficção, a história dos Mau-Tempo inicia-se no período de influência da Lei dos Cereais, atravessa a Campanha do Trigo e a década de abandono das terras, terminando no início da Reforma Agrária.

A história das pessoas começa no segundo capítulo, quando o narrador nos coloca, de corpo inteiro dentro da paisagem, com os pés na terra húmida, partilhando a solidão, o desalento, a fome e a resignação da pequena família de Domingos Mau-Tempo, e percorre as quatro gerações dos Mau-Tempo (três casais e uma menina-mulher), até 1975.

Mau-Tempo é o apelido de Domingos e Sara da Conceição. São o espelho de um povo desterritorializado, desalojado e alienado, fatalmente condenado à desumanidade ditada por outros. Da sua escolha, apenas a morte. A história fictícia desta família é igual a tantas outras histórias reais por esse Alentejo afora, pois «se é em fome e misérias que estamos a pensar condoídos, qualquer outra família serviria». Este casal representa o tempo do silêncio e da resignação. Saramago reserva-lhes seis capítulos.

João Mau-Tempo e Faustina representam o tempo das perguntas e da esperança adiada. São cúmplices no sofrimento e no murmúrio colectivo que começa a levantar-se. António Mau-Tempo, a sua irmã Gracinda e Manuel Espada representam o tempo da resistência política organizada em surdina na paisagem alentejana. A esperança acompanha-os. O milagre aconteceu mais tarde, não pelas mãos de Maria Adelaide, quase mulher, mas pelas mãos da mudança política que Abril proporcionou.

Pelo meio, conheceremos a paisagem das formigas (a paisagem infra), que assistem impotentes e incrédulas, à tortura e morte da sua própria paisagem, Germano Santos Vidigal (que é uma personagem real da resistência anti-fascista, torturado e morto às mãos de Barros e Carrilho, agentes da polícia política, em 1945); e também a paisagem dos anjos (a paisagem supra), que da sua varanda celeste podem acompanhar toda a acção humana sobre o território.

As histórias dos animais domésticos, o coelho, o porco e o cão, são apontamentos trágicos, cabendo-lhes o papel de espelho da degradação da condição humana dos homens do campo, tão próximo da animalidade. Uma ideia reforçada pela discrição das casas deste povo, que mais parecem tocas: um casinhoto baixo, sem janelas, onde para entrar é preciso curvar o corpo. No tempo da ceifa o abrigo é nos palheiros, nas cabanas de terra e palha dos seareiros ou em malhada de monte. As espécies selvagens apresentam um comportamento semelhante ao real, quando vivem no seu habitat natural, à excepção do milhano e da calhandra, que estabelecem um curioso diálogo entre si, da formiga, que caminha de cabeça levantada, ou da lebre curiosa que se aproxima do jornal para ver as notícias. A metáfora é uma arma forte em Saramago.

Esta foi a linha percorrida pelo escritor para nos desvelar um Alentejo trágico (Mau-Tempo) mas mutável (Espada). Estamos perante um livro de resistência, de reconstrução e de esperança, onde a palavra é catalisadora da mudança e da possibilidade de um novo começo. E é aqui que vou fazer entrar Hannah Arendt.

Arendt é uma filósofa judia alemã, pensadora de temas como a violência, a autoridade e o poder. As catástrofes políticas, as calamidades morais e as revoluções constituíram o ponto de partida para a reflexão de Arendt, que trouxe novos conceitos e categorias para a esfera do pensamento político, um deles a banalidade do mal. É contemporânea de Saramago e das personagens reais e fictícias deste romance, tendo vivido os tempos sombrios do séc. XX, como foram os regimes totalitários de Staline e de Hitler, os campos de concentração, as guerras mundiais e as ditaduras do sul da Europa. Morreu em 1975, no ano em que acontece o «dia levantado e principal» que encerra a narrativa de Levantado do Chão.

Não tenho confirmação de algum encontro entre Saramago e Arendt. Arendt morreu em 1975, com 69 anos, Saramago publicou Levantado do Chão em 1980, não sei se alguma vez o serralheiro, mecânico, administrativo, tradutor, jornalista, editor, na sua notável sede de conhecimento, leu Arendt, mas a verdade é que existe uma convergência entre a sensibilidade de Saramago e a racionalidade de Arendt e isso permite uma análise política objectiva do texto literário de Saramago. 

Ambos coincidem na forma como parecem interpretar a Bíblia Sagrada, ambos destacam o valor dos homens na sua pluralidade, ambos são autores de obras dimensionadas para o futuro, ambos são pensadores do começo e da possibilidade do novo. Uma escrita de resistência e reconstrução. Uma escrita de compreensão do mundo.

Em The Human Condition (1958), Arendt distingue uma tripla dimensão humana relacionada com as manifestações mais elementares do ser humano: o animal laborans, que labora através do corpo, o homo faber, que produz os objectos do mundo e o homem de acção ou homo politikos, que liberto das condicionantes das actividades anteriores, tem a liberdade para introduzir novos começos e fugir ao determinismo natural. Estas três actividades constituem a vita activa, em oposição à vita contemplativa, onde se arrumam as outras actividades humanas como são o querer, o pensar e o ajuizar.

Foquemo-nos nas primeiras, nas três actividades práticas que constituem a vita activa e que se traduzem no modo como o homem se relaciona com o mundo, com os outros. Mas antes, dizer que existe entre elas uma relação de complementaridade, não surgindo no mundo umas sem as outras: não existe trabalho sem labor ou acção sem trabalho.

O labor transforma o homem em animal laborans ou operário, empenhado na manutenção das actividades vitais e produtor de bens de consumo imediato. Inapto para a palavra e para a acção, o animal laborans é indiferente ao mundo, sendo totalmente apolítico, incapaz de se organizar. Próximo, muito próximo da animalidade. Vive apenas para a sobrevivência, como se estivesse a girar no interior do aro de uma roda, à semelhança daqueles brinquedos dos ratos, mas, neste caso, se parar, morre.   

O trabalho, que em termos evolutivos sucede ao labor, transforma o homem em artesão ou homo faber, que produz o mundo artificial através do trabalho. Fabrica, a partir da natureza, um mundo organizado e duradouro e os seus produtos são mais ou menos duráveis no tempo, de acordo com o uso que deles se faz. Não nos vamos alongar nesta categoria, por não entrar nesta leitura de Levantado do Chão.

A acção, a actividade mais humana de todas, depende da comunicação, das palavras. É praticada pelos homens que se libertaram da influência das actividades anteriores e acontece quando, num espaço comum, partilham entre si as palavras. Este momento em colectivo dura apenas enquanto durarem a acção e o discurso e desaparece quando as pessoas se dispersam. É através da acção que se imprime movimento ao mundo.

A esfera do animal laborans é privada, corresponde à esfera da família e do lar, onde a hierarquia é bem definida e a força compulsiva é a vida e as suas necessidades. A esfera da acção é pública, é o lugar onde os homens se encontram entre si, em situação de igualdade e de liberdade. Na Antiguidade Grega, as duas esferas eram claramente distintas. Na Idade Média, o fosso entre ambas começa a diluir-se para, na Modernidade, resultarem numa única esfera, a sociedade, onde os interesses privados adquiriram importância pública e a ordem doméstica com cariz económico sujeita a política à sua necessidade, privando-a de liberdade.

Para Arendt, política é a acção praticada na esfera pública, quando recai sobre os assuntos humanos que importam à comunidade, ao país ou ao resto do mundo. Requer liberdade, pluralidade e singularidade, é imprevisível e torna-se irreversível. Apresenta como um fim em si mesmo e não como um meio para outro fim. E logo aqui excluímos da esfera política as restantes esferas económica, religiosa, social e cultural, mas incluímos as cafetarias, os livros, o teatro e o cinema, porque são espaços de diálogo e de circulação de forças, onde podem nascer outras vozes, outras escritas ou outros pensamentos. O mundo comum acaba quando é visto apenas sob um aspecto e só lhe é permitida uma perspectiva. Com a decadência da esfera pública, o mundo comum desapareceu e foi convenientemente substituído pelo elogio da indiferença.

A distinção que Arendt faz entre natureza, a terra e o mundo, ajuda-nos a compreender a sua tese. Para a filósofa, a terra apresenta-se como um limite espacial da habitação e a natureza como material disponível para a construção da morada, que é o mundo. Ou seja, o mundo é o “lar artificial” na terra. É este mundo que recebe o recém-nascido e se constitui como condição humana para a sua existência, a qual Arendt denominou mundanidade. Mais do que condição de vida ou sobrevivência, como o é a natureza, o mundo é condição de humanidade. Inclui não só os artefactos humanos, como também as instituições criadas pelo homem e que condicionam a sua vida em comum com os outros.

O mundo interpõe-se entre o homem e a natureza representando uma «segunda natureza», que não é mais do que a emergência da própria cultura, o palco de toda a acção. O mundo é o espaço onde as coisas se tornam públicas, onde os que estão nele incluídos ocupam lugares diferentes, onde ser visto e ouvido por outros é fundamental na medida em que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É, por isso, o espaço da política.

Em Levantado do Chão, existe apenas a perspectiva do latifúndio, coadjuvada pela Igreja e pelo Estado (fé e a lei). Nesta perspectiva única, a classe trabalhadora é subjugada e remetida à condição de animal laborans. O trabalhador rural, escravizado pelo labor, é considerado apenas e não mais que um animal que, no seu isolamento, longe do mundo, faz face à brutal necessidade de permanecer vivo. Do corpo do animal laborans, ou melhor, das mãos, resultam apenas as coisas menos duráveis, imediatamente consumidas. Indistinto da natureza, sujeito ao ciclo das quatro estações, os homens do campo são incapazes de escapar à linearidade do tempo para criar o seu próprio ritmo. São incapazes de se organizar. Vivem o não-mundo do animal laborans.

Domingos Mau-Tempo é a expressão desta condição de vida. Pela sua ausência do mundo, Domingos Mau-Tempo é apolítico, inapto para a palavra e para a acção, vive indiferente ao mundo, é incapaz de se fazer entender por meio da palavra, incapaz de se revoltar. A necessidade que se lhe impõe priva-o da liberdade, tal como os escravos da Antiguidade e dos tempos modernos, a expressão mais violenta do animal laborans. À semelhança de Domingos Mau-Tempo, o povo trabalhador é incapaz de se organizar em grupo e assumir verdadeiras revoltas. A sua vida centra-se na própria sobrevivência. A actividade, repetitiva no tempo, não permite que se estabeleçam laços com o mundo ou com os outros homens. Cada um termina quando morre, sem deixar marcas. Tal como os animais.

Estabelecer um fim ou um objectivo é o mote para interromper o ciclo natural ou o ciclo estabelecido da injustiça. E para isso é necessário palavras, outras diferentes das que grita o Padre Agamedes ou das que berram o Tenente Contente e o Sargento Armamento, da guarda nacional republicana, ou das que vociferam o Escarro e o Escarrilho da polícia política. É preciso outros dizeres.

Os papéis que, às escondidas, chegaram às mãos de João Mau-Tempo com palavras novas, interromperam o ciclo. Andam vozes no latifúndio. O povo organiza-se, partilha a palavra e ganha força. Pelo capítulo 28.º a liberdade torna-se um objectivo a alcançar. Os «cães» levantam a cabeça, como as formigas, e «ladram» um ladrar novo: «se queres aumento de ordenado, vota no Delgado». A luta continuou, porque Delgado perdeu a eleição.

Saramago conta-nos a história verdadeira da transformação real da mentalidade do povo alentejano, confrontado com situações-limite de fome e de humilhação. De pessoa a pessoa, através de segredos trocados por caminhos de mato, e de silêncios partilhados em salas de tortura, mostra-nos como a consciência política foi ganhando lugar e força, como o animal laborans subiu ao patamar mais elevado da humanidade e se transformou em homem de acção, conquistndo o seu lugar no mundo.

A paisagem alentejana é o palco dos encontros clandestinos dos trabalhadores rurais e a sua luta política por melhores condições de trabalho. Foi, por isso, privilégio dos anjos e do milhano testemunharem a evolução da acção na imensa paisagem alentejana transformada em esfera política. No final do livro, tanto os anjos como o milhano, voltam a testemunhar a caminhada dos homens, todos os nomes, vivos e mortos, unidos numa firmeza igual à do cão Constante, no dia «levantado e principal», reconciliados com o mundo.

À formiga coube-lhe ser testemunha da tortura privada de Germano Vidigal, que à semelhança de José Adelino dos Santos, é uma personagem real da resistência antifascista. «Olé» -assim começa e termina o capítulo décimo sétimo, que conta a tortura de Germano Vidigal através do olhar da formiga.

Fica-nos claro que quando as palavras são arredadas da paisagem, do nosso espaço público, o mundo comum perde a força para manter as pessoas juntas, para relaciona-las entre si e para as separar. Deixamos de ter lugar no mundo, deixamos de ter voz na troca de opiniões. Quando isso acontece, tudo passa a ter apenas uma única perspectiva, a do governante ou de quem o influencia. As ditaduras seguem esta lógica particular de esvaziamento da política, recorrendo à violência, ela própria anti-política, para reprimir a pluralidade. Arendt chama-lhes «tempos sombrios» (1968). Em tempos sombrios, a clandestinidade é a única forma de luta e a invisibilidade do nome uma questão de sobrevivência.

Levantado do Chão inverte a condição social dos trabalhadores rurais, desprovidos de identidade e de propriedade, à semelhança dos escravos, e atribuiu-lhes nome e sobrenome, intenção reforçada pelo facto de o narrador, quando os nomeia, utilizar sempre o nome completo, especialmente no caso dos homens. Com esta distinção, Saramago dá, logo à partida, condição política aos trabalhadores.  

Saramago resgata do esquecimento os trabalhadores rurais alentejanos, esses heróis improváveis, expressão de Soromenho-Marques, tornando possível a todos nós conhecer e compreender tempos que sendo outros poderão vir a ser os nossos. Heróis improváveis, porque sendo a parte mais fraca, alvo fácil das injustiças e opressões, atreveram-se a erguer-se do chão para ganhar um lugar no mundo. Heróis, porque foram capazes de uma revolução. Não a dos Cravos, porque essa é devida aos capitães de Abril, mas a Revolução dos Nomes, assim tomo a liberdade de lhe chamar. Os trabalhadores rurais, desprovidos de propriedade e de identidade, negadas pelas regras do latifúndio, conseguiram desequilibrar o sistema, declarado eterno, e fazer valer os seus nomes, esses nomes que a PIDE ferozmente perseguia e combatia.

A comunhão entre o texto literário de Saramago e as categorias e conceitos de Arendt, confirma a universalidade e a actualidade da obra de ambos (o escritor e a filósofa) e ajuda-nos a perspectivar a nossa própria capacidade perante a ameaça de um retorno ao chão, para utilizarmos a metáfora de Saramago.

Do diálogo entre Saramago e Arendt, resultou o livro «A Paisagem e as palavras que lá estão», publicado pela Apenas Livros, em 2011, sob os auspícios do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Eis-me aqui a falar de um livro publicado há 11 anos, que nos fala de outro livro publicado há 42 anos, para o qual faz todo o sentido chamar a atenção novamente. Estamos ainda longe da maturidade política e o fio da esperança, que já foi maior, está cada vez mais ténue num mundo cada vez mais estilhaçado pelo individualismo e normalizado pela escola da indiferença, onde a soberania dos Estados está cada vez mais fragilizada, dando lugar a novos focos de poder. Hoje em dia não nos vergamos na paisagem, nem sabemos o que isso é, mas vergamo-nos ao telemóvel, alienados por uma realidade virtual, manipuladora e viciante, que nos torna incapazes de pensar. Estamos novamente jogados no chão. Urge levantar de novo.

Obrigada.