terça-feira, 19 de setembro de 2023

Sobre o filme «A Grande Beleza», de Paolo Sorrentino (2013)

 































Já me tinha dado conta da fragilidade da coisa mundana, agravada até ao grotesco na elite cultural italiana (mas não só a italiana), tão bem representada pela estética perturbante de Paolo Sorrentino em «A Grande Beleza», ou reduzida à expressão mínima, paternalista e de bairro, como as fábricas de candelabros de tampões, as camisas-de-vénus para cacilheiros ou os falos esculpidos por aqui e por ali, na esfera mendicante portuguesa (mas não só a portuguesa), com tudo o que de mundano existe por entremeio. O jornalista Jep Gambardella (protagonizado por Toni Servillo) diz-nos, no início do filme, que aos 26 anos ambicionava ser o rei dos mundanos. Acompanhamo-lo agora, aos 65 anos, existindo no sobrenadante da elite artística romana e concluindo sobre a verdade, a beleza, o afecto e a generosidade do sentido de humor.
O conceito de beleza remete-nos para a arte. Falta-me lastro para perceber o que é arte e o que não é. Estou a dar os primeiros passos. Pressinto que a arte é um acto de fé, como tudo o que importa nesta vida. E, também como tudo o que importa na vida, igualmente maltratada. Paolo Sorrentino mostra-nos isso, precisamente. De como a malta prefere alimentar-se do blá blá blá de meia-tigela e da linha branca, em alternativa à sopa quente e à paixão; de como gosta de apresentar-se vestida de colagem e recolagem, decotes, lantejoulas e pele esticada a custos mil, nas festas alimentadas ao som do bum bum bum alienatório, substituto grosseiro das batidas do coração mas nada impeditivo do arrazoado diálogo de narcisos (talvez por ser coisa de surdos); ou de como se entrega ao infrutífero sexo casual, com o entusiasmo letárgico dos moribundos. Isso e o resto, feito de protocolo mandatório e jaculatória hipocrisia, sem esquecer a violência que recai sobre a criança que pinta (sobre o artista), aqui usada como animal de circo. Show off desta infeliz humanidade off, qual cultura de pacote, esse caldo moderno a contrariar o caldo primitivo do planeta, onde a vida se desenvolveu.
O plástico traz uma beleza bruta às cenas do filme, atirando-nos com a verdade aos olhos: o plástico é lixo. Se olharmos em volta, por toda a parte veremos plástico sem arte. O desaparecimento do belo é um indicador preocupante da perda do mundo. Mas então, onde está a grande beleza? Certamente no oposto. No silêncio, na simplicidade, na natureza, na naturalidade, no sentir, no espanto, no medo, na alegria, no sublime, nas epifanias, na autoridade (de autoria), na autenticidade … ou, como me disse um amigo, no afecto, o sinónimo de mimo, ternura, carinho, apego, afago, afeição, atenção, vínculo, desvelo e cuidado. Permitam-me que traga Saramago à prelecção: «enquanto as vamos nós aqui saboreando [às palavras] vão eles [aqueles que (as) vivem] fazendo o que elas dizem, não é nada connosco, nós só sabemos de palavras».
A arte, uma das expressões do belo, parte dos gestos íntimos e apaixonados do artista para chegar ao outro, ao público, em forma de amor, não sendo nunca estéril. Se o for, estamos perante uma masturbação que satisfaz apenas uma necessidade e que nada acrescenta de belo porque não há partilha. Jep Gambardella imaginava o mar no tecto do seu quarto, mas nada mais que isso. A sua amiga não conseguiu ver o mar no tecto, porque vivia aquém disso. A vida masturbatória do escritor impediu-o de publicar livros durante 40 anos. Na sua vida apenas havia publicado um. O desejo de ser o mais mundano de todos os mundanos fê-lo esquecer que a arte, a boa arte, é a mais suprema das coisas mundanas, a que traz significado, profundidade e valor estético às coisas do mundo. Pois então que comece o romance, esse truque da imaginação, «no fundo é apenas um truque, sim, só um truque», disse-nos Jep Gambardella, no final do filme.

Post scriptum: Tenho receio que a humanidade venha a perder a alegria, o nosso mais concreto truque.

(fc/junho2023)