terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Paleta de afectos













Todos os mamíferos têm, algures no cérebro, uma paleta de afectos dinâmica, única e intransmissível. Os afectos misturam-se entre si desde que nascemos, ou talvez antes, à medida das experiências vividas, e vão pintando o nosso lado interior de sentido e de sentimento. A moral não mora aqui. É com esta paleta que vamos a jogo.

(fc/janeiro2023)

Caminhos














A memória é gestante. Nascemos de uma bolsa de água e fazemos o caminho por terra com a mesma determinação dos rios.

Boa sorte, meus putos. ❤️
(fc/janeiro2023)

Dos mal-entendidos


















Dizem os conspiradores das teorias da conspiração que as orelhas estão ao serviço da censura e da desumanização, ao suportarem os muros de TNT feitos para nos calar o oxigénio que nos anima e amordaçar a boca por onde se emagrece qualquer fome. Dizem essas vozes, em coro de negação, que as orelhas se juntaram aos tipos que nos querem transformar em seres de circuito fechado, apodrecido e indistinto, para mais fácil manipulação.

Não se iludam, as orelhas foram recrutadas para uma guerra viral, não para uma guerra de poder. No combate ao vírus, demostram ser tão importantes como qualquer outro agente da linha da frente. Apesar do esforço elástico imposto, as orelhas, quer sejam descaradas ou tímidas, demonstram ser tão ou mais fortes que qualquer osso, ao manter a forma e a função primordiais, sem quebrar ou fraquejar.

São guardiãs do ouvido, o órgão da audição e do equilíbrio, com infalível habilidade para detectar de que lado vem a onda sonora, se da esquerda, da extrema-esquerda, da direita ou da extrema-direita; e mantêm o apoio de retaguarda aos olhos, sempre prontas a auxiliar a visão mais dificultada. Têm também o secreto poder de libertar momentaneamente o corpo de todas as amarras, quando são tocadas pelo calor húmido de uma confissão em sussurro. São a predileção e a perdição dos amantes.

As orelhas nunca seriam baionetas ou marionetas da tirania. Por mais que as dobrem ou adornem, as orelhas permanecerão firmes aliadas dos sentidos e livres de todos os preconceitos. As orelhas não são ovelhas.

FC/Jan2022
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João Eduardo Ferreira, Paulo Cunha e no 3 outras pessoas

Bleu













Três Cores: Azul (Trois Couleurs : Bleu) é um filme de 1993, assinado por Krzysztof Kieslowski, com a jovem Juliette Binoche no papel principal (Julie). Trata-se do primeiro filme de uma trilogia que tem como tema as três cores da bandeira francesa associadas aos ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. «Azul» corresponde à Liberdade.

Pelo título do filme, poder-se-ia pensar que estamos perante um filme político, mas «Bleu» apenas abre a possibilidade de um debate político sobre a União Europeia porque ao longo do filme há uma música que se vai compondo e que irá celebrar a Europa dos Doze e o Tratado Maastricht, facto histórico que poderá, ou não, ser associado à liberdade, um dos ícones da Revolução. O filme não avança mais que isso. A cor azul percorre todo o filme, mas é uma cor de dor e dor não é liberdade. Neste caso, o azul é a mais dura das revoluções.
Julie é a única sobrevivente de um desastre de automóvel, no qual morrem o marido, famoso compositor e maestro, e a filha de apenas cinco anos. Inicia um processo de desapego das suas pessoas e coisas, não por luto, mas por luta contra si. Julie é compositora, apesar da sua criação nunca ter sido assinada com o seu nome. Ao morrer o marido, que assumia as suas obras, ela fica impossibilitada de criar sem pôr em causa o bom nome do marido, coisa que por amor não fará. O filme é precisamente sobre isto, sobre a importância da arte para o artista. Não haverá dor maior que a morte de um filho, mas também não haverá fractura maior do que aquela que impede um artista de se cumprir na sua arte.
Mas o filme é também sobre o amor, porque o amor tem este mau hábito de dar as cartas e fazer-nos sujeitar ao jogo. Neste caso, temos um amor que nunca foi (o do marido), um amor que se esfuma quando percebe que nunca teve retorno (o de Julie) e um amor devoto (o do assistente do marido). Foi este amor devoto, discreto, desinteressado e concreto que levou a arte de volta à sua autora (à sua amada), permitindo-lhe a redenção. Só depois disso, foi possível para Julie fazer o luto da filha.
Um filme extraordinário, profundamente estético, que nos confirma que a liberdade mora na arte e o amor é o melhor caminho para lá chegar.

(fc/julho2022)

O mais lúcia-lima fim de festa que conheço






Dia de preguiça, paredes-meias com a preguiça dos domingos, pausa obrigatória na casa de partida, jogos de tabuleiros desarrumados, deixa-los estar, a mesa com restos do dia de ontem, é o bastante, um livro não lido ao alcance da mão, e que bom é ter um livro para ler e não o fazer, o poeta tem razão, um filme europeu no telecomando, os pés aquecidos pelo carinho do Natal e o ócio como companheiro de sofá. Nem comemorações nem ambições nem chateações, cada um devolvido a si mesmo e ao seu Brutus.

(fc/1janeiro2023)

Poeta a tempo inteiro















O tempo faz-nos fazedores de afazeres inventados, que parecendo em vão, não o são. Visto de fora, alguns dirão: "lá anda ele atarantado", mas não. Ele está concentrado. Organiza o seu lugar

Dá à pedra a utilidade do madeiro, ao lenho a função de canteiro, à erva, uma a uma e com critério extremo, o seu destino derradeiro. Beneficiam as acelgas a liberdade e a brandura daquele amar.
As pequenas alfaias ganham um novo despropósito, enquanto a laranja se espanta do espanto do hortelão jardineiro. Se procura um dos gatos Jimi, porque não apareceram para comer, acaba por se distrair na função de aguadeiro, daqui para ali e dali para aqui, sob o olhar atento do loureiro.
Sempre pronto a partilhar, ele explica a quem o visitar, e não importa quantas vezes precisar, a lógica estranha daquele lugar cimeiro, deixando escapar através do sorriso o orgulho de ser o arquiteto deste projecto pioneiro. Caramba. Não será isto poesia? É! O meu pai é um poeta a tempo inteiro.

FC/26dez2022

O Natal























Para mim, o Natal não é nem religioso nem o seu oposto pagão, é sim uma celebração política. Celebro o nascimento de Cristo, esse homem político que se cumpria através das suas boas palavras e no amor pelo mundo; celebro o nascimento dos meus três filhos; celebro o nascimento de todas as crianças feitas homens, deste tempo e do passado; celebro também todas as crianças que ainda o são e guardam em si a possibilidade do novo. E grito bem alto a minha mais profunda repulsa por todo aquele que violenta crianças, seja por demência doméstica, seja por demência pública, como o é o terrorismo e o ódio ao outro, seja pela guerra, seja pelo que for. Qualquer forma de violência sobre crianças é um crime contra a humanidade. Vivam todas as crianças! Feliz dia de Natal!

fc/natal2023