segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Revolução dos nomes (Fundação O Cerro, S. Luís, 19/ Nov./ 2022)

 



[Comunicação feita na Fundação O Cerro, São Luís, Alentejo, a propósito do livro «A paisagem e as palavras que lá estão - Levantado do Chão, um romance político», no dia 19 de Novembro de 2022]


  

Agradeço o convite à Fundação O Cerro, na pessoa do Silvestre Martins, e também a presença de todos vós.

 É um privilégio estar aqui hoje convosco, integrar este painel de escritores, declamadores e cantadores, no Alentejo, lugar de resistência e de poesia, com o propósito de falar sobre Levantado do Chão, de José Saramago, um romance que se cruza com a realidade alentejana dos primeiros 75 anos do século XX, e nos revela a crescente consciencialização política do povo alentejano, que se atreveu a levantar do chão, da animalidade, para conquistar um lugar no mundo e a sua própria humanidade. Levantado do Chão é a história de um milagre, como adiante se justificará.

A vós me junto na qualidade de leitora, que busca na obra literária perspectivas diferentes da vida humana e memórias de histórias reais passadas; e que busca, na obra filosófica, as respostas para as nossas preocupações mais prementes, nomeadamente as que resultam da crescente crise civilizacional que vivemos hoje. Ambas, Literatura Filosofia, quase se tocam e, por vezes, confundem-se, pois alguns textos filosóficos, pela sua beleza, quase parecem literários e alguns textos literários, pela sua profundidade, são claramente filosóficos, como é o caso da obra de José Saramago. Literatura e Filosofia têm em comum a palavra.

É a palavra que permite a memória e possibilita a novidade, ambas fundamentais na história evolutiva humana. E isto foi muito bem entendido por Saramago, quando em Levantado do Chão, o seu primeiro romance de projecção literária, oralizou a escrita. Fê-lo, cruzando os discursos directo e indirecto na forma típica do falar alentejano, enriquecendo-a com o imenso léxico destes lugares e utilizando as parábolas, metáforas, alegorias, sarcasmo e o humor, sem qualquer poupança. Até nos silêncios de Levantado do Chão se sente o respirar do Alentejo. 

Sem pudor, Saramago mandou às urtigas a pontuação convencional e fez da oralidade alentejana o seu próprio estilo literário, como se quisesse estar de viva voz com o leitor, envolvendo-o também no diálogo com as personagens, e justifica: cada palavra foi escrita para ser dita, para sair da boca do leitor, «porque aí soa e vive completamente».

Sobre o estilo literário de Saramago, Juan Manuel de Prada disse o seguinte: “Nesse estilo que é forma e fundo ao mesmo tempo, música interior e fluxo sustenido da primeira à última linha, reside a principal singularidade de uma obra que exerce sobre nós o mesmo poder de convicção da melhor poesia”.

Estamos perante um estilo literário único, que para além do enorme poder de sedução, tem também o poder de sugestão. A sua complexidade e profundidade são um permanente convite para ir mais além do que está explícito, para ler as entrelinhas.

Autorizados que estamos a utilizar a nossa própria imaginação e a fazer a nossa própria leitura, uma delas poderá ser a seguinte: 

O número 33 é aplicado a uma série de circunstâncias diferentes, ao longo do livro: a) o livro é composto por 33 capítulos não numerados e sem título; b) Manuel Espada (que se casou com Gracinda) teve «trinta e três razões» para o bom acolhimento na família Mau-Tempo; c) por altura da transição da monarquia para a república houve manifestações por melhor salário e acabaram presos 33 camponeses; d) lá mais para diante, quando o povo começa a organizar-se, ganham coragem e exigem uma jorna de trinta e três escudos. Para mim, o número 33 transportou-me para a idade de Jesus Cristo, quando foi crucificado e tentei perceber se teria razão.

Na verdade, muitos dos aspectos da história bíblica estão presentes em Levantado do Chão, com maior expressão no nascimento de Maria Adelaide. É um claro sinal da admiração literária e política que Saramago tem pelo texto sagrado. Ao estabelecer uma relação entre o nascimento de Maria Adelaide e de Jesus Cristo, Saramago transforma o conto humano em conto sagrado e vice-versa. Mas não se fica apenas pelo nascimento de Maria Adelaide. João Mau-Tempo partilha com Jesus Cristo a pobreza, a injustiça social, a prepotência dos poderosos e a tonalidade clara dos olhos; Germano Vidigal partilha com Jesus Cristo a paixão (via sacra); e os homens que andam pelo latifúndio, em encontros clandestinos, mantendo grandes conversações, levando papéis e decisões, são comparados a apóstolos.

Humanizado o texto bíblico, torna-se mais fácil interpretar a actividade de Jesus numa perspectiva política. Jesus Cristo foi líder de um pequeno grupo de seguidores, empenhados em desafiar as autoridades através da palavra. Foi, nesta perspectiva, um homem político, a quem são reconhecidas as influências da política grega originária, nomeadamente a capacidade persuasiva do discurso. Através da prédica, Jesus e os seus apóstolos acreditavam ser possível o milagre. 

O milagre, que tem um significado puramente político e jamais religioso, é, tão-somente, a possibilidade de um novo começo, de algo imprevisível que interrompa o decurso dos acontecimentos históricos a favor do colectivo. Como o nascimento de uma criança ou como uma revolução, por exemplo. O número trinta e três não aparece por acaso. Acho que Saramago se diverte neste jogo.

O primeiro capítulo é inteiramente dedicado à paisagem. O narrador faz-nos olhar para a sua imensidão. Esse olhar sublime de Saramago transporta-nos para o campo do grandioso e do inefável, preparando-nos para o carácter mítico e épico da história que está prestes a começar. Ainda no primeiro parágrafo do romance, o escritor deixa antever toda a representação simbólica que atribuirá à paisagem quando, à imensidão espacial e temporal, é acrescentada outra cor que a paisagem trabalhada não revela: o vermelho de «sangue sangrado» (11), simbolizando o conflito de classes, o tema de fundo de Levantado do Chão.

Fazendo coincidir a realidade com a ficção, a história dos Mau-Tempo inicia-se no período de influência da Lei dos Cereais, atravessa a Campanha do Trigo e a década de abandono das terras, terminando no início da Reforma Agrária.

A história das pessoas começa no segundo capítulo, quando o narrador nos coloca, de corpo inteiro dentro da paisagem, com os pés na terra húmida, partilhando a solidão, o desalento, a fome e a resignação da pequena família de Domingos Mau-Tempo, e percorre as quatro gerações dos Mau-Tempo (três casais e uma menina-mulher), até 1975.

Mau-Tempo é o apelido de Domingos e Sara da Conceição. São o espelho de um povo desterritorializado, desalojado e alienado, fatalmente condenado à desumanidade ditada por outros. Da sua escolha, apenas a morte. A história fictícia desta família é igual a tantas outras histórias reais por esse Alentejo afora, pois «se é em fome e misérias que estamos a pensar condoídos, qualquer outra família serviria». Este casal representa o tempo do silêncio e da resignação. Saramago reserva-lhes seis capítulos.

João Mau-Tempo e Faustina representam o tempo das perguntas e da esperança adiada. São cúmplices no sofrimento e no murmúrio colectivo que começa a levantar-se. António Mau-Tempo, a sua irmã Gracinda e Manuel Espada representam o tempo da resistência política organizada em surdina na paisagem alentejana. A esperança acompanha-os. O milagre aconteceu mais tarde, não pelas mãos de Maria Adelaide, quase mulher, mas pelas mãos da mudança política que Abril proporcionou.

Pelo meio, conheceremos a paisagem das formigas (a paisagem infra), que assistem impotentes e incrédulas, à tortura e morte da sua própria paisagem, Germano Santos Vidigal (que é uma personagem real da resistência anti-fascista, torturado e morto às mãos de Barros e Carrilho, agentes da polícia política, em 1945); e também a paisagem dos anjos (a paisagem supra), que da sua varanda celeste podem acompanhar toda a acção humana sobre o território.

As histórias dos animais domésticos, o coelho, o porco e o cão, são apontamentos trágicos, cabendo-lhes o papel de espelho da degradação da condição humana dos homens do campo, tão próximo da animalidade. Uma ideia reforçada pela discrição das casas deste povo, que mais parecem tocas: um casinhoto baixo, sem janelas, onde para entrar é preciso curvar o corpo. No tempo da ceifa o abrigo é nos palheiros, nas cabanas de terra e palha dos seareiros ou em malhada de monte. As espécies selvagens apresentam um comportamento semelhante ao real, quando vivem no seu habitat natural, à excepção do milhano e da calhandra, que estabelecem um curioso diálogo entre si, da formiga, que caminha de cabeça levantada, ou da lebre curiosa que se aproxima do jornal para ver as notícias. A metáfora é uma arma forte em Saramago.

Esta foi a linha percorrida pelo escritor para nos desvelar um Alentejo trágico (Mau-Tempo) mas mutável (Espada). Estamos perante um livro de resistência, de reconstrução e de esperança, onde a palavra é catalisadora da mudança e da possibilidade de um novo começo. E é aqui que vou fazer entrar Hannah Arendt.

Arendt é uma filósofa judia alemã, pensadora de temas como a violência, a autoridade e o poder. As catástrofes políticas, as calamidades morais e as revoluções constituíram o ponto de partida para a reflexão de Arendt, que trouxe novos conceitos e categorias para a esfera do pensamento político, um deles a banalidade do mal. É contemporânea de Saramago e das personagens reais e fictícias deste romance, tendo vivido os tempos sombrios do séc. XX, como foram os regimes totalitários de Staline e de Hitler, os campos de concentração, as guerras mundiais e as ditaduras do sul da Europa. Morreu em 1975, no ano em que acontece o «dia levantado e principal» que encerra a narrativa de Levantado do Chão.

Não tenho confirmação de algum encontro entre Saramago e Arendt. Arendt morreu em 1975, com 69 anos, Saramago publicou Levantado do Chão em 1980, não sei se alguma vez o serralheiro, mecânico, administrativo, tradutor, jornalista, editor, na sua notável sede de conhecimento, leu Arendt, mas a verdade é que existe uma convergência entre a sensibilidade de Saramago e a racionalidade de Arendt e isso permite uma análise política objectiva do texto literário de Saramago. 

Ambos coincidem na forma como parecem interpretar a Bíblia Sagrada, ambos destacam o valor dos homens na sua pluralidade, ambos são autores de obras dimensionadas para o futuro, ambos são pensadores do começo e da possibilidade do novo. Uma escrita de resistência e reconstrução. Uma escrita de compreensão do mundo.

Em The Human Condition (1958), Arendt distingue uma tripla dimensão humana relacionada com as manifestações mais elementares do ser humano: o animal laborans, que labora através do corpo, o homo faber, que produz os objectos do mundo e o homem de acção ou homo politikos, que liberto das condicionantes das actividades anteriores, tem a liberdade para introduzir novos começos e fugir ao determinismo natural. Estas três actividades constituem a vita activa, em oposição à vita contemplativa, onde se arrumam as outras actividades humanas como são o querer, o pensar e o ajuizar.

Foquemo-nos nas primeiras, nas três actividades práticas que constituem a vita activa e que se traduzem no modo como o homem se relaciona com o mundo, com os outros. Mas antes, dizer que existe entre elas uma relação de complementaridade, não surgindo no mundo umas sem as outras: não existe trabalho sem labor ou acção sem trabalho.

O labor transforma o homem em animal laborans ou operário, empenhado na manutenção das actividades vitais e produtor de bens de consumo imediato. Inapto para a palavra e para a acção, o animal laborans é indiferente ao mundo, sendo totalmente apolítico, incapaz de se organizar. Próximo, muito próximo da animalidade. Vive apenas para a sobrevivência, como se estivesse a girar no interior do aro de uma roda, à semelhança daqueles brinquedos dos ratos, mas, neste caso, se parar, morre.   

O trabalho, que em termos evolutivos sucede ao labor, transforma o homem em artesão ou homo faber, que produz o mundo artificial através do trabalho. Fabrica, a partir da natureza, um mundo organizado e duradouro e os seus produtos são mais ou menos duráveis no tempo, de acordo com o uso que deles se faz. Não nos vamos alongar nesta categoria, por não entrar nesta leitura de Levantado do Chão.

A acção, a actividade mais humana de todas, depende da comunicação, das palavras. É praticada pelos homens que se libertaram da influência das actividades anteriores e acontece quando, num espaço comum, partilham entre si as palavras. Este momento em colectivo dura apenas enquanto durarem a acção e o discurso e desaparece quando as pessoas se dispersam. É através da acção que se imprime movimento ao mundo.

A esfera do animal laborans é privada, corresponde à esfera da família e do lar, onde a hierarquia é bem definida e a força compulsiva é a vida e as suas necessidades. A esfera da acção é pública, é o lugar onde os homens se encontram entre si, em situação de igualdade e de liberdade. Na Antiguidade Grega, as duas esferas eram claramente distintas. Na Idade Média, o fosso entre ambas começa a diluir-se para, na Modernidade, resultarem numa única esfera, a sociedade, onde os interesses privados adquiriram importância pública e a ordem doméstica com cariz económico sujeita a política à sua necessidade, privando-a de liberdade.

Para Arendt, política é a acção praticada na esfera pública, quando recai sobre os assuntos humanos que importam à comunidade, ao país ou ao resto do mundo. Requer liberdade, pluralidade e singularidade, é imprevisível e torna-se irreversível. Apresenta como um fim em si mesmo e não como um meio para outro fim. E logo aqui excluímos da esfera política as restantes esferas económica, religiosa, social e cultural, mas incluímos as cafetarias, os livros, o teatro e o cinema, porque são espaços de diálogo e de circulação de forças, onde podem nascer outras vozes, outras escritas ou outros pensamentos. O mundo comum acaba quando é visto apenas sob um aspecto e só lhe é permitida uma perspectiva. Com a decadência da esfera pública, o mundo comum desapareceu e foi convenientemente substituído pelo elogio da indiferença.

A distinção que Arendt faz entre natureza, a terra e o mundo, ajuda-nos a compreender a sua tese. Para a filósofa, a terra apresenta-se como um limite espacial da habitação e a natureza como material disponível para a construção da morada, que é o mundo. Ou seja, o mundo é o “lar artificial” na terra. É este mundo que recebe o recém-nascido e se constitui como condição humana para a sua existência, a qual Arendt denominou mundanidade. Mais do que condição de vida ou sobrevivência, como o é a natureza, o mundo é condição de humanidade. Inclui não só os artefactos humanos, como também as instituições criadas pelo homem e que condicionam a sua vida em comum com os outros.

O mundo interpõe-se entre o homem e a natureza representando uma «segunda natureza», que não é mais do que a emergência da própria cultura, o palco de toda a acção. O mundo é o espaço onde as coisas se tornam públicas, onde os que estão nele incluídos ocupam lugares diferentes, onde ser visto e ouvido por outros é fundamental na medida em que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É, por isso, o espaço da política.

Em Levantado do Chão, existe apenas a perspectiva do latifúndio, coadjuvada pela Igreja e pelo Estado (fé e a lei). Nesta perspectiva única, a classe trabalhadora é subjugada e remetida à condição de animal laborans. O trabalhador rural, escravizado pelo labor, é considerado apenas e não mais que um animal que, no seu isolamento, longe do mundo, faz face à brutal necessidade de permanecer vivo. Do corpo do animal laborans, ou melhor, das mãos, resultam apenas as coisas menos duráveis, imediatamente consumidas. Indistinto da natureza, sujeito ao ciclo das quatro estações, os homens do campo são incapazes de escapar à linearidade do tempo para criar o seu próprio ritmo. São incapazes de se organizar. Vivem o não-mundo do animal laborans.

Domingos Mau-Tempo é a expressão desta condição de vida. Pela sua ausência do mundo, Domingos Mau-Tempo é apolítico, inapto para a palavra e para a acção, vive indiferente ao mundo, é incapaz de se fazer entender por meio da palavra, incapaz de se revoltar. A necessidade que se lhe impõe priva-o da liberdade, tal como os escravos da Antiguidade e dos tempos modernos, a expressão mais violenta do animal laborans. À semelhança de Domingos Mau-Tempo, o povo trabalhador é incapaz de se organizar em grupo e assumir verdadeiras revoltas. A sua vida centra-se na própria sobrevivência. A actividade, repetitiva no tempo, não permite que se estabeleçam laços com o mundo ou com os outros homens. Cada um termina quando morre, sem deixar marcas. Tal como os animais.

Estabelecer um fim ou um objectivo é o mote para interromper o ciclo natural ou o ciclo estabelecido da injustiça. E para isso é necessário palavras, outras diferentes das que grita o Padre Agamedes ou das que berram o Tenente Contente e o Sargento Armamento, da guarda nacional republicana, ou das que vociferam o Escarro e o Escarrilho da polícia política. É preciso outros dizeres.

Os papéis que, às escondidas, chegaram às mãos de João Mau-Tempo com palavras novas, interromperam o ciclo. Andam vozes no latifúndio. O povo organiza-se, partilha a palavra e ganha força. Pelo capítulo 28.º a liberdade torna-se um objectivo a alcançar. Os «cães» levantam a cabeça, como as formigas, e «ladram» um ladrar novo: «se queres aumento de ordenado, vota no Delgado». A luta continuou, porque Delgado perdeu a eleição.

Saramago conta-nos a história verdadeira da transformação real da mentalidade do povo alentejano, confrontado com situações-limite de fome e de humilhação. De pessoa a pessoa, através de segredos trocados por caminhos de mato, e de silêncios partilhados em salas de tortura, mostra-nos como a consciência política foi ganhando lugar e força, como o animal laborans subiu ao patamar mais elevado da humanidade e se transformou em homem de acção, conquistndo o seu lugar no mundo.

A paisagem alentejana é o palco dos encontros clandestinos dos trabalhadores rurais e a sua luta política por melhores condições de trabalho. Foi, por isso, privilégio dos anjos e do milhano testemunharem a evolução da acção na imensa paisagem alentejana transformada em esfera política. No final do livro, tanto os anjos como o milhano, voltam a testemunhar a caminhada dos homens, todos os nomes, vivos e mortos, unidos numa firmeza igual à do cão Constante, no dia «levantado e principal», reconciliados com o mundo.

À formiga coube-lhe ser testemunha da tortura privada de Germano Vidigal, que à semelhança de José Adelino dos Santos, é uma personagem real da resistência antifascista. «Olé» -assim começa e termina o capítulo décimo sétimo, que conta a tortura de Germano Vidigal através do olhar da formiga.

Fica-nos claro que quando as palavras são arredadas da paisagem, do nosso espaço público, o mundo comum perde a força para manter as pessoas juntas, para relaciona-las entre si e para as separar. Deixamos de ter lugar no mundo, deixamos de ter voz na troca de opiniões. Quando isso acontece, tudo passa a ter apenas uma única perspectiva, a do governante ou de quem o influencia. As ditaduras seguem esta lógica particular de esvaziamento da política, recorrendo à violência, ela própria anti-política, para reprimir a pluralidade. Arendt chama-lhes «tempos sombrios» (1968). Em tempos sombrios, a clandestinidade é a única forma de luta e a invisibilidade do nome uma questão de sobrevivência.

Levantado do Chão inverte a condição social dos trabalhadores rurais, desprovidos de identidade e de propriedade, à semelhança dos escravos, e atribuiu-lhes nome e sobrenome, intenção reforçada pelo facto de o narrador, quando os nomeia, utilizar sempre o nome completo, especialmente no caso dos homens. Com esta distinção, Saramago dá, logo à partida, condição política aos trabalhadores.  

Saramago resgata do esquecimento os trabalhadores rurais alentejanos, esses heróis improváveis, expressão de Soromenho-Marques, tornando possível a todos nós conhecer e compreender tempos que sendo outros poderão vir a ser os nossos. Heróis improváveis, porque sendo a parte mais fraca, alvo fácil das injustiças e opressões, atreveram-se a erguer-se do chão para ganhar um lugar no mundo. Heróis, porque foram capazes de uma revolução. Não a dos Cravos, porque essa é devida aos capitães de Abril, mas a Revolução dos Nomes, assim tomo a liberdade de lhe chamar. Os trabalhadores rurais, desprovidos de propriedade e de identidade, negadas pelas regras do latifúndio, conseguiram desequilibrar o sistema, declarado eterno, e fazer valer os seus nomes, esses nomes que a PIDE ferozmente perseguia e combatia.

A comunhão entre o texto literário de Saramago e as categorias e conceitos de Arendt, confirma a universalidade e a actualidade da obra de ambos (o escritor e a filósofa) e ajuda-nos a perspectivar a nossa própria capacidade perante a ameaça de um retorno ao chão, para utilizarmos a metáfora de Saramago.

Do diálogo entre Saramago e Arendt, resultou o livro «A Paisagem e as palavras que lá estão», publicado pela Apenas Livros, em 2011, sob os auspícios do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Eis-me aqui a falar de um livro publicado há 11 anos, que nos fala de outro livro publicado há 42 anos, para o qual faz todo o sentido chamar a atenção novamente. Estamos ainda longe da maturidade política e o fio da esperança, que já foi maior, está cada vez mais ténue num mundo cada vez mais estilhaçado pelo individualismo e normalizado pela escola da indiferença, onde a soberania dos Estados está cada vez mais fragilizada, dando lugar a novos focos de poder. Hoje em dia não nos vergamos na paisagem, nem sabemos o que isso é, mas vergamo-nos ao telemóvel, alienados por uma realidade virtual, manipuladora e viciante, que nos torna incapazes de pensar. Estamos novamente jogados no chão. Urge levantar de novo.

Obrigada.


quarta-feira, 13 de julho de 2022

Epifanias estéticas / Jean-Marie Schaeffer












Jean-Marie Schaeffer trouxe ao CCB uma reflexão sobre a experiência estética enquanto forma de estar no mundo. Falou-nos dos sentidos e sobretudo da atenção estética, que nos permitem explorar activa e conscientemente a informação e os estímulos que nos rodeiam com maior profundidade e, porventura, atingir momentos de revelação ou, como lhes chamou, epifanias estéticas. Para o pensador francês, a experiência estética aumenta a realidade da vida real. Eis um breve resumo.
A atenção é a acção consciente de concentração mental sobre determinado objecto ou informação que nos chega do exterior ou do interior. Na sua apresentação, Schaeffer distinguiu a atenção estética da atenção comum pela importância que cada uma atribui à coisa observada. Na atenção estética existe um tratamento descendente, significando isto que a atenção desce ao pormenor, dando-lhe a máxima prioridade. No caso da atenção comum, a apreciação é ascendente, ou seja, a atenção dispersa-se sobre o global onde o pormenor está inserido, muitas vezes um todo monofórmico já conhecido que mascara a manifestação real do pormenor, em relação ao qual passa a haver desatenção.
Schaeffer referiu dois estilos de atenção: a convergente, que procura rapidamente uma crença ou uma verdade; e a divergente, que se apoia na atenção descendente e na categorização adiada. A categorização adiada corresponde a uma procura sem conclusão, onde o meio é o próprio fim. Não se trata de economia de tratamento de informação, mas sim de uma viagem da mente em busca de si própria, sempre em exercício de desenvolvimento e de liberdade. Esta viagem requer tempo, por isso é importante aprender a ser lento, e requer também uma relação estética e polimórfica com as coisas. Só assim será possível descobrir o que já existe mas que ainda não havíamos visto. A atenção divergente parte em busca e usufrui do novo, sem categorizar ou concluir. É como se viajássemos por dentro dos livros, dos quadros ou dos sons em busca de coisas novas, daquilo que ainda não se conhece, estimulando com a novidade redes de neurónio que se reorganizam em novas cadeias de informação, numa espécie de aprendizagem permanente.
A experiência estética pode ter uma dimensão funcional se se integrar numa experiência mais global, para através dela atingir outra função. Schaeffer deu vários exemplos, um deles foi a cerimónia do chá no Japão, considerada uma arte canónica. Desde a arquitetura da casa até à chávena de chá, tudo tem um sentido estético com efeito social e global.
A experiência estética também se encontra nas epifanias, que são manifestações de transcendência no nosso mundo. Há quem defenda que o mundo transcendente é que é o verdadeiro, veja-se a verdade poética, por exemplo. Na epifania, a experiência estética é mais concentrada no tempo, mas o processo é o mesmo. Aliás, há um jogo entre ambas, pois o movimento que irradia da epifania vai afectar o ritmo e os fluxos da experiência estética, à semelhança do músculo cardíaco em relação à vida.
A relação estética é natural nos artistas, por terem uma mente descendente e divergente, por serem capazes de deliciar-se com o próprio processo criativo, com a forma como desliza a mão sobre a tela, sobre a escultura, sobre o texto, sobre o instrumento musical ou mesmo sobre a máquina fotográfica. A boa notícia dada por Schaeffer é a de que a atitude estética está ao alcance de todos nós e pode aprender-se ou reaprender-se. Para isso, basta despragmatizar, criar bolhas no interior das actividades quotidianas, rejeitar a pressa, a alienação das massas, reparar nos pormenores das coisas, escutar-se a si próprio e deixar-se ir em busca da sua própria autenticidade.
FC/Junho2022




Mortes roubadas

 























Rui Cardoso Martins diz-nos que o «tempo» é esse intervalo em que o corpo de quem amamos arrefece. Nesse tempo, diz-nos o escritor, cabe a vida inteira da pessoa amada. Uma vida e um tempo que nos lançam para diante, como se renascêssemos a partir da vida que se perde.
Quando nos roubam a vida, roubam-nos também a morte. A história do mundo é uma história de guerras, ódios e valas comuns, onde se amontoam os despojos de mortes roubadas, sem terem tido terra ou oração, sem terem tido tempo para arrefecer.
As mortes roubadas são hiatos no tempo. Todas somadas, atingem uma dimensão tal que se torna inultrapassável a lacuna entre o passado e o futuro da própria humanidade. Perdido está o fio condutor.
Deus não faz um reset nisto porque ainda temos a natureza, a arte, o céu de Garvão e o cheiro do pão acabado de sair do forno a lenha. É urgente uma atitude estética.
(FC/junho2022)

O chão em volta

 















A maior riqueza de um homem é a sua incompletude, diz Manoel de Barros, e eu concordo, porque também sou abastada nesse ponto. Para não contrariar isso, distraio-me com muita facilidade, faço o que tem de ser feito no tapete, mas procuro sentir o chão das coisas em volta. O melhor caminho é sempre aquele fora do caminho.
fc/julho2022

sábado, 18 de junho de 2022

Santo Popular


 









Marchai, marchai, oh raia miúda engordurada, egrégios netos do avô da nação, povo que aos costumes diz sempre nada, quando deveria dizer claramente Não!

Vistam a vossa pobreza com cerveja, vinho e pão, oh bom povo que marchais escorreito, hoje há arraial e alienação, amanhã, terás balas no peito. E aos costumes disse nada.

Tenho um sonho que realizei, o de ser rei onde a sardinha é rainha, sou o pai de toda a grei (e lei) neste lindo Portugal, o meu pátio alfacinha. E aos costumes disse nada.

Este ainda não nasceu, mas serve na perfeição, leva lá um xoxo meu, com sabor à minha amada (acabei de a comer), serás bem-vindo ao país da ilusão, pst, senhor fotógrafo, apanhou?, não? E aos costumes disse … não ouvi … não?… 

Que o Santo vos acompanhe e o Ronaldo nunca nos falte.

(FC/junho2022)


Abraço

 






















A vida, quando vivida, desatina, inevitavelmente, o destino destinado, dá voltas, dá muitas voltas, não é a direito por aí afora, como se fosse um caso sem acaso, asséptico, céptico, programado, saudado com um beijo em cada uma das faces. A vida, quando vivida, é o pulsar do inesperado, o querer do acaso, linha curva, envolvente, como o abraço, quando se cumprimentam e cumprem os corações.

(FC/14junho2022)

Uma viagem ao interior

 













O tempo, o silêncio e a solitude trazem-nos à consciência as nossas fragilidades, mas também a infinitude das nossas possibilidades, eis onde devemos poisar o nosso foco. Uma viagem ao interior, sem fronteiras nem limites ou preconceitos, não carece de passe social, é de borla (das poucas coisas) e jamais será gratuita. Depois, é seguir em frente.

(FC/junho2022)


segunda-feira, 6 de junho de 2022

Do que tenho aprendido

 



















Inspirada em Fernando Pessoa, eis-me em pleno contraditório, despida de preconceitos e coerência, aceitando o desafio de procurar nos «estados de alma da luz» e nas «atitudes da paisagem», sensações políticas, religiosas e artísticas. Talvez assim, mergulhada no jogo livre dos sentidos e disponível para a vivência estética, consiga realizar a minha humanidade com beleza, elegância, serenidade e amor, esse outro sentido que nos atira para níveis de inspiração e de imaginação incomuns, como nos diz Nick Cave. 

E a liberdade? A liberdade não é a ausência de compromisso, mas o seu contrário, com o atributo da curiosidade, do espanto, da espontaneidade, do atrevimento e da disponibilidade para o novo. Como me disse um amigo, a liberdade é a forma de seguir a saudade até chegarmos a casa, à nossa essência, onde encontramos a autenticidade. 

(FC/maio2022)

quinta-feira, 26 de maio de 2022

«That's how the light gets in»

 












Habitamos a fenda onde se tocam todos os opostos e de onde nos vem o desejo e o ensejo de vivemos na urgência de dar corpo à alma, numa conformidade a fins sem fins, apenas porque sim. 

FC/26maio2022

quarta-feira, 18 de maio de 2022

"This Much I Know To Be True"

 














"This Much I Know To Be True" é um filme-documentário de Andrew Dominik sobre o processo criativo de Nick Cave & Warren Ellis, com músicas ao vivo dos álbuns “Ghosteen” (2019) e “Carnage” (2021) e uma participação especial de Marianne Faithfull. A extraordinária fotografia é de Robbie Ryan.
Como prelúdio, Nick apresenta-nos, à luz do dia e trajando uma bata branca de escultor, as 18 estatuetas do Diabo, criadas por si durante o confinamento Covid, que nos contam a vida do Diabo desde o nascimento até à morte. Uma vida banal, com o remorso a surgir mais adiante, e uma profunda e dolorosa paixão quando, no final, se ajoelha aos pés de uma criança, pedindo perdão. As restantes estatuetas parecem ser tão-somente o cumprimento de uma caminhada recta e solitária entre o nascimento e a morte, como ordenam os mandamentos.
Depois, entramos noite adentro, onde dorme o antiquíssimo do mundo, pela voz de Nick, central num salão despojado de tudo o que é supérfluo. Ali, apenas as três vozes do coro, os quatro violinistas, o baterista e Warren Ellis, essa extraordinária figura tribal e transcendente, o homem de todos os instrumentos, incluindo o do corpo e o do arrepiante grito da alma, em absoluta sintonia com Nick. Dois gigantes captados por duas câmaras numa pista circular, alcançando-se entre si e deixando ver um pouco dos bastidores da acção.
Somos tomados pelas canções-poesia ou canções-filosofia que se vão sucedendo em crescente catarse, como se fossem sempre a última; pela força do coro, dos violinos, do uivo de Warren e das luzes, que irrompem diante dos nossos olhos, gelando-nos o pensamento; e pelo movimento dos corpos de Nick e de Warren à medida que a música flui naquele espaço feito de sensibilidade, natureza e noite, obrigando-nos a olhar para o nosso próprio mundo interior e recusado.
Seria avassalador, não fosse a sequência das canções interrompida, aqui e ali, por pequenos excertos descontraídos que nos mostram pormenores da vida de Nick e de Warren, a atitude de Nick perante as mais de 30 mil mensagens que recebe no site The Red Hand Files e que o mantém racional, e a forma como lida com a desordem fértil de Warren e lhe reconhece generosidade artística e pessoal. Marianne Faithfull aparece envelhecida, sentada numa cadeira de rodas e ligada ao oxigénio, que retira para poder ler uma canção-falada de Nick. Desconcertante.
Nestes momentos, respiramos fundo e recuperamos do choque que é a descida às nossas próprias entranhas. Salva-nos a extraordinária beleza deste filme-catarse que, ao mesmo tempo que aprofunda os sentimentos mais obscuros que Nick coloca nas suas canções, também os alivia, permitindo-nos olhar de frente para tanto desespero, paixão e dor. «It's a long way to find peace of mind, peace of mind », canta-nos Nick.
«Todos vivemos as nossas vidas perigosamente, num risco constante, à beira da calamidade. Com o tempo, descobrimos que não temos o controlo de tudo. Nunca tivemos. Nunca teremos», diz-nos Nick. Precisamos reconhecer essa limitação e levar mais a sério a sensibilidade e a noite, onde se esconde o mito, o mistério anterior à história e às sagradas escrituras de onde nos surgem os ditames de Deus e do Diabo. Talvez assim, livres do desejo de uma felicidade catalogada, possamos encontrar o sentido das coisas e da vida. O cantor confessa, no final, querer libertar-se dos rótulos de músico e escritor, para ser apenas marido, pai, amigo e cidadão. Grande Nick, grande Warren, grande Andrew, grande Robbie. Enorme filme.

FC/maio2022

(2ª foto: Charlie Gray)

O amor e o tempo

 















O amor baralha o tempo. Estica-o, encolhe-o, paralisa-o, torce-o, destorce-o, distorce-o, determina-lhe os dias e as noites, pinta-lhe a manta, faz dele gato-sapato. O amor é do caneco. Não há opiáceo que lhe chegue aos pés.

fc/maio2022


sexta-feira, 13 de maio de 2022

«Será que existe uma estética da natureza?»

 


























O ciclo de conferências “Políticas da Estética: O Futuro do Sensível”, que decorre no CCB, apresentou hoje Catherine Larrère e a questão sobre a existência de uma estética da natureza. A oradora colocou-nos, no início da sua palestra, na segunda metade do século XIX e iniciou a viagem pela motivação estética da natureza em artistas franceses e americanos de então e pelo contributo da sua arte para a ideia de protecção da natureza, na altura olhada pelo prisma estético do sublime e do pitoresco, com apelo às emoções. A arte destacava a beleza da paisagem e isso impeliu-nos à sua protecção.

A palestra de Catherine Larrère continha várias questões: A que chamamos belo quando falamos da natureza? Necessitamos dos artistas para captar o belo da natureza? Não será esta visão artística da paisagem (uma natureza ao longe) uma mediação redutora e antropocêntrica, como afirmaram algumas das vozes ecologistas de então? Sobrevive a estética da natureza a um varrimento científico? Se suprimirmos a mediação artística, o que acontece à estética da natureza? 

Catherine citou Georges Sand: «Tout le monde a droit à la beauté et à la poésie de nos forêts» (1872). Georges Sand referia-se à floresta de Fontainebleau: «… qui est une de belles choses du monde, et la detruire serait, dans l’ordre moral, une spoliation, un attentat vraiment sauvage à ce droit de propriété intellectuelle qui fait de celui qui n’a rien que la vue des belles choses, l’égal, quelquefois supérieur de celui qui les possède». Um exemplo de emancipação social através da ecologia, mas isso são outros assuntos, regressemos ao Belo.

Aldo Leopold, um dos precursores da ética ambiental, veio à cena, trazendo consigo em simultâneo uma visão moral e ecológica sobre a natureza: «Une chose est juste lorsqu'elle tend à préserver l'intégrité, la stabilité et la beauté de la communauté biotique. Elle est injuste lorsqu'elle tend à l'inverse». Para Leopold, o olhar artístico dá à natureza uma beleza que não é a sua, ou seja, a natureza brilha com uma luz emprestada pelo artista plástico. Mais importante é a beleza autónoma da natureza, que Leopold afirma existir. Mas como chegar a ela?

Catherine apresentou-nos Ronald Hepburn, para quem estética e arte são sinónimos; Allen Carson, que defende que só é possível apreciar a beleza da natureza com conhecimento científico; Arnold Berleant, que trouxe a dimensão do sensível, a importância de mobiliar todos os sentidos e estar dentro da natureza, dentro da paisagem. Trouxe também Merleu-Ponty, Richard Long e Timothy Morton. Este último com a questão «Poderá haver uma ecologia sem natureza?». Mergulhámos na arte oriental e na neblina que esconde a montanha feita de arranha-céus, como se pode ver no quadro de Yang Yongliang.  Ali nada é natural, mas o quadro é de uma beleza impressionante. A não-natureza a ser igualmente bela. 

No final, pudemos ver alguns exemplos de Art/Land, um movimento artístico que utiliza matérias naturais, transformando-as em peças de arte, promovendo uma relação próxima com as coisas da natureza. Uma mediação artística que olha a natureza por dentro, com olhos de ver e sentir. 

O sublime, a veneração, a virilidade, o temor já não existem na natureza, temos de a olhar e ver de outra forma. Na vida comum há muita natureza e é preciso aprender a sentir essa natureza, disse-nos Catherine. A estética é uma forma de pensarmos e nos situarmos no mundo de forma diferente.  Mobilizarmos a imaginação que alimenta a arte tornou-se mais importante que nunca. Precisamos aproximarmo-nos da natureza e sermos um pouco como os povos indígenas que ainda sobrevivem e para quem a natureza não é objecto mas sim sujeito. A frase mais marcante de uma outra conferência em que participei, a 23.ª SBSTTA da Convenção sobre a Biodiversidade (Novembro de 2019, em Montreal), foi dita por uma representante do povo Inuit, do Ártico: 

«We respect the animals. We follow the animals, we follow the weather … we don’t try to control them», Utqiagvik Elder. 

Estarei novamente a afastar-me do tema? Não. Estética, arte e também natureza talvez sejam a mesma coisa. 

FC/12maio2022






terça-feira, 10 de maio de 2022

Catarina
















Pela terceira vez, no mais íntimo dos colos, em ninho feito de mar, um proto-coração embrionário convidou-me a amar. Aceitei. Eras tu. Entreguei-me aos teus sentidos e deixei-me ser, de novo, aprendiz de tal força da natureza. Foste paixão em modo rupestre, arte indelével em corpo prenhe, gente em construção, vontade inteira, novidade, revolução.

De mim partiste para a mim chegares, num 10 de Maio inicial, inteiro e limpo, lembrando a liberdade de Sophia. Chamei-te Catarina, o nome do meu ninho, feito de amor. Sem rede ou livro de instruções, fizemo-nos ao caminho. Passo a passo, mão na mão, abraço a abraço, falhando cada vez melhor. És agora todos os géneros literários, com luz própria, num mundo ainda por conquistar.   


FC/Maio2022

domingo, 1 de maio de 2022

No banco dos nus













Em 48 anos de democracia portuguesa, o mundo girou e o país girou com ele, mas nem por cá nem pelo mundo se conquistou a maturidade política. Continuamos serviçais de uma política de trazer por casa, baseada na resolução das necessidades de alguns (o dono da casa) e não no cumprimento das liberdades de todos. No banco dos nus continuamos, a taparmo-nos cada um com a sua firmeza ou com a ausência dela, a arrastarmo-nos pela esfera pública qual animal laborans, inaptos na palavra e na acção, mas eficientes no labor, ou seja, no metabolismo de sobrevivência. Indiferentes ao mundo, fomos facilmente manipulados e o trabalho perdeu todo o conceito que o dignificava. Viva o 1º de Maio!

Ao longo dos anos e à vista de todos, os objectos de uso, por princípio duráveis no tempo, passaram a ser vistos como bens de consumo vital, perecíveis e rapidamente consumidos. Como consequência, a instrumentalidade da fabricação transformou-se na intrumentalização ilimitada de tudo o que existe. Toca a produzir, consumir, devorar e deitar fora as nossas casas, as nossas roupas, móveis, telemóveis, carros, tudo. Trabalhemos na base do Efémero, construindo o Supérfluo, assim ordena o bicho. Viva o 1º de Maio!

Já vai longe a luta pelas oito horas e o grito pelo direito ao trabalho. Também as palavras foram instrumentalizadas. A única coisa levada em conta, e em boa conta, é o processo laboral de produção e consumo, o garante dos libidinosos oligocratas. Vamos lá fazendo festas e romarias e inventando necessidades, que eles (nós) nem se dão conta. Viva o 1º de Maio!

O circuito de abate está montado: primeiro foram os objectos de uso-consumo-e-deita-fora e depois a natureza, que se transforma e consome até à exaustão, sem tempo para recuperação. Calha bem porque nos vazios haverá mais espaço para depositarmos a matéria mais imperecível que soubemos inventar: o lixo. Produzimo-lo com as nossas próprias mãos, durante as nossas horas de trabalho e de descanso, a troco da nossa própria vida e da nossa morte. Assim deve ser, para que a máquina continue a engordar. Não sabem eles que na natureza nunca haverá vazios. Viva o 1º de Maio!

Os homens são os terceiros a entrar neste circuito debulhador. Também nós, afundados no nosso individualismo de sofá, já olhamos para os outros (nós) como supérfluos e não hesitamos em deitá-los ao sofrimento e à morte. Viva o 1° de Maio!

FC/1maio2022





terça-feira, 26 de abril de 2022

O artesão da luz

 













O pintor tem acesso à textura invisível do mundo através do seu corpo, capaz de escapar, sem pudor, às linhas do eixo cartesiano, libertando-se de convenções, conceitos e juízos. São as coisas que o olham, quando ele olha as coisas. Um corpo em diálogo, com um alcance angular de 360º, não só em torno de si mesmo como para dentro de si, um casamento perfeito entre o sensível (alma) e o inteligível (espírito). Diz-nos Cézanne que o olhar do pintor vai até às «próprias raízes do Ser, na fonte impalpável das sensações». Diz-nos Merleu-Ponty que sentir e transmitir o espaço e a luz é a filosofia que anima o pintor quando ele pensa pictoricamente, isto é, «quando da sua visão se faz gesto», sem intenção à partida nem pretensão à chegada. A pintura é pensamento sem conceito, é pensamento livre, é um nascer continuado. E nós, que olhamos o quadro do pintor com uma pele diferente? Conseguiremos nós atingir a mesma luz?  

FC/26Abril2022

«A pés juntos»




António De Castro Caeiro e Luís Gouveia Monteiro conversaram, a pés juntos, sobre a liberdade, a morada da liberdade e a sua possibilidade, na Casa da Cultura de Setúbal, no serão de sexta-feira última. Sabemos de nós pelas palavras, por isso me foi tão grato ter posto os meus pés naquela excitação quântica apontada à consciência da liberdade.

A palavra teve lugar sagrado e não houve espaço para a demagogia, que floresce daninha sempre que a necessidade se impõe à verdade, nos fractura o mundo comum e nos rouba a liberdade. Diz-nos Sophia: «Com fúria e raiva acuso o demagogo/Que se promove à sombra da palavra/E da palavra faz poder e jogo/E transforma as palavras em moeda/Como se fez com o trigo e com a terra» (1974). Na boca do demagogo, a liberdade é voz de prisão. 

Vivemos convencidos de que somos livres, tontos de nós, que apenas resistimos ou sobrevivemos em solidão organizada das massas, qual placa de Petri onde se cultiva a ignorância, vendendo a todo o momento a nossa liberdade, o nosso tempo, o nosso pensamento. Num mundo cada vez mais manipulado e precipitado para o pensamento único, a liberdade tem vindo a perder o seu carácter absoluto e encontra-se, de novo, remetida para a esfera contemplativa dos pensadores, dos artistas e dos escritores, refugiada das fragilidades dos assuntos políticos. A conversa entre António Caeiro e Luís Monteiro foi uma acção de partilha e resistência dentro de portas. Aplaudo a iniciativa.

A liberdade foi apresentada como uma possibilidade de si, podendo expressar-se através da paixão, que nos rouba o chão para depois, talvez, nele nos virmos a estatelar, mas que importa isso se o valor da paixão é a própria paixão e não mais que isso? Uma colecção de defuntos certificará tal liberdade, mas atenção, a adicção pela sofreguidão leva-nos à prisão. Quem fala destas paixões falará de todas as outras e, em todas elas, findo o período de estranha metamorfose, vemo-nos acrescentados de vida, mundo, autenticidade e liberdade e sentimo-nos mais preparados para amar.

A liberdade não é ausência de compromisso, mas o seu contrário, com o atributo do espanto, da espontaneidade, da curiosidade e da disponibilidade para o novo. A liberdade é a forma de seguir a saudade até chegarmos a casa, à nossa essência, assim aprendi ali. A liberdade é a possibilidade de escolha, conjugada com a serenidade e, atrevo-me a dizer, também com o afecto. Jorge Palma tem razão, «a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo».

Saramago está presente nos muros da pequena polis da liberdade, na Casa da Cultura de Setúbal, qual guardião da mais elevada forma da vida humana. Talvez ele nos explique melhor o que é a liberdade. Fui roubar-lhe um trecho de Levantado do Chão (1980):

«Porém, dali a Monte Lavre foi António Mau-Tempo pensativo porque dera com duas gotas de água na palma da mão e não atinava de onde teriam elas vindo, tanto mais que não se misturavam uma com a outra, rolavam como pérolas, são prodígios também no latifúndio costumados, só os presunçosos têm dúvidas. Estamos que António Mau-Tempo ainda hoje teria as gotas de água, se ao chegar a casa, no gesto de abraçar a mãe, elas não lhe tivessem escapado da mão, e voado pela porta fora, ruflando umas asas brancas. Que pássaros são estes, Não sei, minha mãe».

Fernanda Cunha/25Abril2022


sexta-feira, 8 de abril de 2022

Meu Pai


 














Meu Pai

De onde lhe nasce o sorriso com que me brinda e ampara, se lhe apareço desconhecida?

De que outrora regressa, quando lhe dizem que aquela que o cumprimentou é a sua filha?

De que lonjura vem essa memória de mim, que logo restabelece o laço inquebrável?

 

Meu Pai

Como consegue orientar-se no tempo, se os mitos se impõem à história?

Com que estranhamentos se debate, sem que demos por isso?

Quem lhe roubou o pretérito-perfeito?

 

Meu Pai,

Grande é a sua sabedoria,

Que faz da natureza que lhe invade o logos, a sua própria destreza

Privilegiando a sensibilidade como guia, 

Num mundo reduzido à muda poesia.

 

Meu Pai,

Não são necessárias palavras agrafadas ao tempo, deixe-as ir.  

Sempre apreciei a liberdade.

Basta sentar-me consigo e ouvi-lo um pouco, um poucochinho

E abraçar a sua serenidade.

 

FC/08abril2022


sexta-feira, 25 de março de 2022

Muitas



















É quando o caminho se estreita que todas as minhas pessoas, ou possibilidades, como quiserdes, se põem em sentido e acertam as suas diferenças. Espatifar-me no chão é que não. Às vezes, até dá para conhecer uma nova, por se agarrar ao corpo de forma diferente das demais. Até ali desconhecida, mas minha habitante longínqua, certamente. Faz-se notada e eu recebo-a. Sempre.


FC/março2022