terça-feira, 26 de abril de 2022

O artesão da luz

 













O pintor tem acesso à textura invisível do mundo através do seu corpo, capaz de escapar, sem pudor, às linhas do eixo cartesiano, libertando-se de convenções, conceitos e juízos. São as coisas que o olham, quando ele olha as coisas. Um corpo em diálogo, com um alcance angular de 360º, não só em torno de si mesmo como para dentro de si, um casamento perfeito entre o sensível (alma) e o inteligível (espírito). Diz-nos Cézanne que o olhar do pintor vai até às «próprias raízes do Ser, na fonte impalpável das sensações». Diz-nos Merleu-Ponty que sentir e transmitir o espaço e a luz é a filosofia que anima o pintor quando ele pensa pictoricamente, isto é, «quando da sua visão se faz gesto», sem intenção à partida nem pretensão à chegada. A pintura é pensamento sem conceito, é pensamento livre, é um nascer continuado. E nós, que olhamos o quadro do pintor com uma pele diferente? Conseguiremos nós atingir a mesma luz?  

FC/26Abril2022

«A pés juntos»




António De Castro Caeiro e Luís Gouveia Monteiro conversaram, a pés juntos, sobre a liberdade, a morada da liberdade e a sua possibilidade, na Casa da Cultura de Setúbal, no serão de sexta-feira última. Sabemos de nós pelas palavras, por isso me foi tão grato ter posto os meus pés naquela excitação quântica apontada à consciência da liberdade.

A palavra teve lugar sagrado e não houve espaço para a demagogia, que floresce daninha sempre que a necessidade se impõe à verdade, nos fractura o mundo comum e nos rouba a liberdade. Diz-nos Sophia: «Com fúria e raiva acuso o demagogo/Que se promove à sombra da palavra/E da palavra faz poder e jogo/E transforma as palavras em moeda/Como se fez com o trigo e com a terra» (1974). Na boca do demagogo, a liberdade é voz de prisão. 

Vivemos convencidos de que somos livres, tontos de nós, que apenas resistimos ou sobrevivemos em solidão organizada das massas, qual placa de Petri onde se cultiva a ignorância, vendendo a todo o momento a nossa liberdade, o nosso tempo, o nosso pensamento. Num mundo cada vez mais manipulado e precipitado para o pensamento único, a liberdade tem vindo a perder o seu carácter absoluto e encontra-se, de novo, remetida para a esfera contemplativa dos pensadores, dos artistas e dos escritores, refugiada das fragilidades dos assuntos políticos. A conversa entre António Caeiro e Luís Monteiro foi uma acção de partilha e resistência dentro de portas. Aplaudo a iniciativa.

A liberdade foi apresentada como uma possibilidade de si, podendo expressar-se através da paixão, que nos rouba o chão para depois, talvez, nele nos virmos a estatelar, mas que importa isso se o valor da paixão é a própria paixão e não mais que isso? Uma colecção de defuntos certificará tal liberdade, mas atenção, a adicção pela sofreguidão leva-nos à prisão. Quem fala destas paixões falará de todas as outras e, em todas elas, findo o período de estranha metamorfose, vemo-nos acrescentados de vida, mundo, autenticidade e liberdade e sentimo-nos mais preparados para amar.

A liberdade não é ausência de compromisso, mas o seu contrário, com o atributo do espanto, da espontaneidade, da curiosidade e da disponibilidade para o novo. A liberdade é a forma de seguir a saudade até chegarmos a casa, à nossa essência, assim aprendi ali. A liberdade é a possibilidade de escolha, conjugada com a serenidade e, atrevo-me a dizer, também com o afecto. Jorge Palma tem razão, «a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo».

Saramago está presente nos muros da pequena polis da liberdade, na Casa da Cultura de Setúbal, qual guardião da mais elevada forma da vida humana. Talvez ele nos explique melhor o que é a liberdade. Fui roubar-lhe um trecho de Levantado do Chão (1980):

«Porém, dali a Monte Lavre foi António Mau-Tempo pensativo porque dera com duas gotas de água na palma da mão e não atinava de onde teriam elas vindo, tanto mais que não se misturavam uma com a outra, rolavam como pérolas, são prodígios também no latifúndio costumados, só os presunçosos têm dúvidas. Estamos que António Mau-Tempo ainda hoje teria as gotas de água, se ao chegar a casa, no gesto de abraçar a mãe, elas não lhe tivessem escapado da mão, e voado pela porta fora, ruflando umas asas brancas. Que pássaros são estes, Não sei, minha mãe».

Fernanda Cunha/25Abril2022


sexta-feira, 8 de abril de 2022

Meu Pai


 














Meu Pai

De onde lhe nasce o sorriso com que me brinda e ampara, se lhe apareço desconhecida?

De que outrora regressa, quando lhe dizem que aquela que o cumprimentou é a sua filha?

De que lonjura vem essa memória de mim, que logo restabelece o laço inquebrável?

 

Meu Pai

Como consegue orientar-se no tempo, se os mitos se impõem à história?

Com que estranhamentos se debate, sem que demos por isso?

Quem lhe roubou o pretérito-perfeito?

 

Meu Pai,

Grande é a sua sabedoria,

Que faz da natureza que lhe invade o logos, a sua própria destreza

Privilegiando a sensibilidade como guia, 

Num mundo reduzido à muda poesia.

 

Meu Pai,

Não são necessárias palavras agrafadas ao tempo, deixe-as ir.  

Sempre apreciei a liberdade.

Basta sentar-me consigo e ouvi-lo um pouco, um poucochinho

E abraçar a sua serenidade.

 

FC/08abril2022