domingo, 5 de novembro de 2023

Gaza

 
















Tanto em Gaza como noutros lugares do planeta onde a guerra persiste por mão dos mais poderosos, racionalmente alimentados pela macro-economia das armas e dos recursos não renováveis (petróleo, diamantes, lítio, etc) e irracionalmente alimentados pela necessidade (des)humana do poder sobre o outro, levado à prática através da chacina dos mais fracos, daqueles que por razão ética ou por limitação económica, não se armaram até aos dentes, mas que, por má sorte, nasceram em lugares-alvo de mentes criminosas em corpos cobardes, gente que, por circunstâncias nem sempre claras, são chefes de países (eis o lugar perfeito para o serial killer), fisicamente protegidos por guarda-costas e politicamente apoiados por fantoches guarda-ódios, isto é, por uma comunicação social prostituída e por uma sociedade massivamente alienada que vê a guerra pela televisão como se de futebol se tratasse, gritando furiosamente vivas às mortes roubadas.
A história do mundo é uma história de guerras, ódios e valas comuns onde se amontoam corpos que não tiveram terra nem oração, não tiveram tempo para arrefecer. Quando nos roubam a vida, roubam-nos também a morte. Roubam-nos o tempo necessário para seguir em frente, para renascer a partir da vida que se perde. Tanto para a pessoa que perdeu o seu ente querido, como para a população vítima da guerra, como para o mundo no seu todo. Estamos perante crimes contra a humanidade à qual todos pertencemos. Cada um de nós é alvo desta e de todas as outras guerras. Tenhamos isso presente.
As mortes roubadas são hiatos no tempo. Todas somadas, podem vir a atingir uma dimensão tal, que se torne inultrapassável a lacuna entre o passado e o futuro da própria humanidade. Perdido estará o fio condutor. A bem de todos nós, importa não autorizar que alguém nos roube esse tempo, importa condenar em absoluto a guerra, seja ela qual for, seja ela onde for, seja ela por que motivo for. Na Palestina, na Ucrânia, na Síria, no Yemen ... fuck the war!
(fc/novembro2023)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

No mundo do Outro

 















«A humanidade é um enorme fardo para o Homem»

Hannah Arendt

 

 

Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados, uma em cada cento e treze pessoas em todo mundo é solicitante de refúgio, deslocada interna ou refugiada, forçada a sair da sua casa e do seu país, muitas das vezes deixando para trás a identidade que a distingue, o valor mais precioso do ser humano, outras das vezes perdendo a própria vida. Apesar do esforço investido na confiança e na igualdade pela «grande sociedade europeia», nascida dos destroços da Segunda Guerra Mundial, somos chegados, décadas depois, a uma sociedade estilhaçada pelo individualismo, normalizada pela indiferença, com a esfera pública e política destorcida pelo sprint das super-organizações de interesse privado, movidas por uma lógica do poder pelo poder, com a banalidade e a corrupção a ganharem um perigoso destaque. Nem os recém-deslocados nem os residentes poderão sentir o mundo como a sua casa, uma vez que a vizinhança em ambos não será reconhecida. Sessenta milhões de pessoas vindas de todo o lugar para lugar nenhum são a confirmação do fim do mundo comum. Cento e treze em cada cento e treze pessoas serão párias de si e párias da Humanidade. Como foi possível chegarmos aqui? Para compreender os fenómenos da banalidade e do mal, debrucemo-nos um pouco sobre o holocausto, a expressão extrema do mal no mundo, muito para lá das guerras, das perseguições ou das lutas pelo território, dirigido aos judeus, um povo que há mais de dois mil anos vive na condição de outro, sem nunca ter conseguido uma casa política.

Há pouco mais de cem anos, na velha e monárquica Viena vivia-se um mundo sem perturbações ou revoluções, depositava-se confiança no idealismo liberal e cumpria-se a ordem planificada pelo parlamento, eleito democraticamente. Um mundo confiante, vivido sem pressa. Nele, os judeus chegados dois séculos antes, encontraram o ambiente perfeito para as suas aspirações artísticas e rapidamente ascenderam ao lugar de guardiões da cultura vienense, deixada como herança pela Imperadora Maria Theresia. A assimilação social pelos círculos não-judaicos foi a forma de não sofrerem o preconceito anti-semita, emergente no século anterior. A elite judaica considerava-se, desta forma, cidadã de pleno direito. Trataram o anti-semitismo, que é uma questão política, como se fosse uma questão social. Ora, a igualdade social, marcadamente exclusiva, é diferente da igualdade política, necessariamente inclusiva, mas isso foi uma lição que não lhes chegou a tempo. O ilustre império da cultura e da arte foi convertido num posto avançado do regime nazi, a partir do qual o nacional-socialismo desagregaria a Europa inteira. A inexistência de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos e garantias ao judeu, em conjunto com a assimilação social, que ajudou a criar a ideia do judaísmo como um atributo inato, permitiu o extermínio do povo judaico durante o regime totalitário do III Reich, período em que a Alemanha se separou em duas: os alemães e os outros.  

Do outro lado dos outros encontrava-se Hitler, que teve, desde logo, a clara noção da importância da opinião pública, não somente para a conquista de votos (o regime nazi nasceu do voto do povo), mas também, e sobretudo, para a concretização do seu perverso objectivo: a prática de crimes contra a Humanidade. O nacional-socialismo utilizou a mentira organizada para cultivar o medo e justificar as medidas radicais e imorais sem qualquer possibilidade de debate, categoricamente eliminado da esfera pública e política. A consciência colectiva da necessidade de salvar o povo da miséria, da pobreza e do desemprego, com a certeza de se tratar de uma situação sem alternativa, foi a pedra angular para uma ideologia que se resumia ao seguinte: não há lugar para o outro (nem outras opiniões nem outros povos) porque o outro faz perigar a nossa vida. Por via de uma propaganda magistralmente organizada, a mentira foi tantas vezes dita que se tornou verdade, permitindo a Hitler arrastar multidões para o mundo ideológico nazi. O incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, e as prisões ilegais que se efectuaram nessa noite, bem como a Kristallnacht, em 9 e 10 de Novembro de 1938, com mais de 250 sinagogas queimadas, cerca de 7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus mortos, cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueados, foram meros actos de propaganda. Dali em diante, apenas se poderia esperar o pior.

A mentalidade alemã encontrava-se de tal maneira impregnada de ilusão e embuste que o extermínio de deficientes, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e judeus, seus vizinhos, amigos e familiares, todos cidadãos europeus, foi quase considerado normal. Aliás, normal e determinado por lei. Despojados do emprego, das casas, dos espaços sociais, das escolas e das universidades, do apelido, do nome próprio, das emoções e de todos os direitos, incluindo o direito à alimentação e à saúde, os judeus foram transformados em cadáveres vivos, indesejável escória social cuja imagem, largamente divulgada, confirmava a ideia de serem pedintes sem valor e escumalha perigosa para a qualidade de vida alemã. Inúteis e supérfluos, os judeus alemães e europeus, eram agora oficialmente os outros. Estavam a mais, não deveriam habitar o planeta. A sua erradicação de todos os territórios ocupados foi aplaudida por uma maioria ensandecida pela propaganda xenófoba, animada pelo culto à personalidade do Führer e orientada pela mão invisível da burocracia.

A Solução Final é, pela sua forma mais do que pelo número de mortos, o acontecimento mais brutal da História. Como foi possível, nos guetos e nos campos da morte, anular a compaixão e a piedade ou mesmo o sentimento de culpa em pessoas que não são homicidas ou sádicas por natureza? O truque é a autocomiseração, explica-nos a filósofa Hannah Arendt. Se estivermos mergulhados no nosso próprio sofrimento, torna-se difícil ver o sofrimento no outro, portanto, bastou inverter os instintos naturais de piedade e compaixão e dirigi-los para si mesmos: em vez de dizerem «fiz coisas horríveis a estas pessoas», dizem «tive de ver e fazer coisas horríveis, foi um fardo muito pesado que carreguei nos ombros». Quanto ao sentimento de culpa, que implica a consciência da culpa e o sentido de responsabilidade, foi anulado pelo facto de considerarem que estavam apenas a cumprir ordens: «tiveram de o fazer». Onde não há responsabilidade não há culpa, onde não há culpa não há crime, onde não há crime não há vítimas, resume-nos Arendt. E se não houver vítimas, as questões morais e éticas nem sequer se colocam. Mas houve vítimas. Pessoas que foram torturadas por médicos em experiência e pessoas que foram assassinadas por carrascos e vítimas-carrascos que colaboraram entre si na prossecução do mal.

O holocausto nazi evidenciou duas realidades que se julgavam impossíveis: a destruição da moral numa sociedade organizada e a prática de crimes por homens vulgares. É neste contexto que surge o conceito arendtiano da banalidade do mal ou banal falta de pensamento, que não é congénita nem adquirida mas que provém de uma ausência de mundo que empurra os homens para níveis próximos da animalidade, incapazes de pensar a partir do ponto de vista do outro, incapazes de distinguir a legalidade jurídica da legitimidade moral, incapazes de desobedecer face à crueldade. Homens desprovidos de pensamento e imaginação, cuja leviandade abriu portas à banalidade do mal. O povo alemão não era alienado da norma, era a própria norma, pois viveu-se e morreu-se de acordo com o mal burocratizado para o qual bastou um sistema hierarquizado e impessoal e competências normalizadas por procedimentos, para se alastrar como se fosse uma praga incontrolável. A moral não é um valor absoluto assente num imperativo categórico, antes pelo contrário, resulta de algo que flui nos homens: o pensamento. Na ausência deste, o mal torna-se possível, banal e incontrolável.

O pensamento é a faculdade que permite a cada pessoa distinguir o bem do mal e o belo do feio. Sócrates descreve-o como um conjunto de perguntas e respostas entre o eu e si mesmo (a consciência), tão rápido e silencioso que a sua estrutura dialógica é difícil de detectar, de adulterar ou mesmo anular, apesar de ser possível adiar. Acontece sempre que estamos fora do mundo, a sós connosco mesmos. Nesses momentos, a unidade eu cinde-se em dois eus e conversam de si para si. Quando deixamos de estar a sós, quando o mundo exterior nos interrompe a solidão, voltamos a ser um perante os outros, mas acrescentados com o juízo construído a partir do diálogo interior, que nos trouxe um novo ponto de vista relativamente à circunstância envolvente. O pensamento é, desta maneira, um diálogo antecipado com os outros. Qualquer pessoa privada de solidão ou de imaginação é incapaz de ganhar consciência. Torna-se indistinto da norma, banal cumpridor de regras, funcionário de qualquer coisa, que parte da regra geral para a aplicar a todos os particulares, sem qualquer espírito crítico. Por insegurança, recusa a pluralidade e a diferença tanto no outro como em si mesmo. Limita-se a obedecer.  

O pensamento é a condição necessária para o exercício ético mas não é, por si só, condição suficiente para uma ética-política, ou seja, para o pensamento e acção em conjunto. Para isso é necessário tornar o pensamento, ou melhor, o juízo que dele resultou, visível através da opinião. O juízo, pessoal e transmissível, que se constrói a partir de eventos particulares, considerados sempre na sua contingência e sem preconceito, tem a capacidade de estabelecer uma ligação entre a subjectividade individual e a intersubjectividade da vida pública e social das comunidades políticas, reconhecendo-lhes as diferenças. São eles que estão na base da construção da opinião pública e de um sentido comum democrático. O juízo não admite, por necessidade de pluralidade e de liberdade, a exclusão de partes do mundo, ou seja, a exclusão dos outros. 

A opinião comum encerra em si a capacidade de rejeitar as verdades racionais (as verdades matemáticas, as verdades científicas e as verdades filosóficas) e as mentiras intencionais, mas não as evita. A facilidade com que a verdade de facto é interpretada como opinião ou substituída por uma mentira intencional, é uma ameaça a ter em conta. No primeiro caso, tal confusão desvaloriza a importância política quer da opinião quer da verdade de facto, ambas fundamentais na prática democrática; quanto à mentira intencional, se se tratar de um mentiroso privado que tenta a sua sorte, não oferece perigo, mas a mentira organizada, como vimos, é uma arma potente por conter em si uma intencionalidade não revelada. Se for confirmada por maioria de opinião, é aceite como verdade de facto e ganha a força dos seus apoiantes.

Falemos agora de outra lição não aprendida pelos judeus. Após o holocausto, não obstante o genocídio, o horror sofrido e a deslocação forçada, os judeus continuaram a pensar o mundo em termos totalitários. Nas imagens históricas divulgadas por Ada Ushpiz no filme Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt (2015), podemos ouvir as palavras proferidas no Congresso Sionista de 1944, quando foi reivindicado o direito a um Estado judaico que deveria abranger toda a Palestina: «… essa reparação será o Estado judeu uno, livre e democrático de Israel, ainda que pouco signifique para os outros povos». Os palestinianos estavam excluídos da solução, ainda que habitassem o território que lhes pertence por direito e História. A divisão entre os judeus e os outros ficou clara. Um antagonismo racista e chauvinista sobre aqueles que eram seus vizinhos e que ficaram obrigados a duas opções: emigração voluntária ou cidadania de segunda. Escolheram a terceira: a guerrilha. O mundo comum desaparece sempre que se perde uma parte dele, ou seja, sempre que um povo ou um vasto grupo de pessoas ou mesmo uma pessoa, são considerados supérfluos, ainda que tenham sido co-constructores deste mundo que agora lhes recusa a existência.

Vive-se hoje, na Europa, no Médio Oriente e em África, o drama dos refugiados. Um mundo de gente fugida à fome e à guerra, arrancada dos laços sociais e familiares, sem sentido de vida, sem discurso, emagrecida, desabrigada, desamparada, desesperada, desnacionalizada, destituída de direitos e de dignidade, esvaziada de identidade, tratada como supérflua por um outro mundo dominado pela economia e pela estatística do comportamento que não admite espaço para a diferença, obcecado pela segurança do status quo. A lição da História, cada um toma-a como lhe convém. O racismo e a xenofobia já ganharam terreno, pois as soluções totalitárias fazem-se sentir um pouco pela Europa, com o conveniente alerta de que a dignidade humana se encontra ameaçada pela miséria social e económica, dadas como irresolúveis. Se forem criadas situações-limite, a necessidade impor-se-á à verdade, abrindo a oportunidade para os governantes justificarem a solução que lhes é conveniente. A possibilidade de retorno ao passado paira no ar já contaminado, e as suas consequências serão imprevisíveis, pois vivemos tempos diferentes. Do lado de cá, a mesma sociedade de massas, escola do supérfluo, onde a ausência de sentido é produzida diariamente, em permanente ode à indiferença, intensificada pela realidade virtual que veio fragilizar a soberania dos Estados e originar novos focos de poder. Do lado dos outros, a dor física da inumanidade, o castigo sem crime, a expressão viva do «supérfluo». Uns e outros cada vez mais incapazes de pensar. A banalidade do mal aguarda a sua oportunidade.

 

Fernanda Cunha

(texto publicado na revista  A Morte do Artista, #2, 2018)

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Sobre o filme «A Grande Beleza», de Paolo Sorrentino (2013)

 































Já me tinha dado conta da fragilidade da coisa mundana, agravada até ao grotesco na elite cultural italiana (mas não só a italiana), tão bem representada pela estética perturbante de Paolo Sorrentino em «A Grande Beleza», ou reduzida à expressão mínima, paternalista e de bairro, como as fábricas de candelabros de tampões, as camisas-de-vénus para cacilheiros ou os falos esculpidos por aqui e por ali, na esfera mendicante portuguesa (mas não só a portuguesa), com tudo o que de mundano existe por entremeio. O jornalista Jep Gambardella (protagonizado por Toni Servillo) diz-nos, no início do filme, que aos 26 anos ambicionava ser o rei dos mundanos. Acompanhamo-lo agora, aos 65 anos, existindo no sobrenadante da elite artística romana e concluindo sobre a verdade, a beleza, o afecto e a generosidade do sentido de humor.
O conceito de beleza remete-nos para a arte. Falta-me lastro para perceber o que é arte e o que não é. Estou a dar os primeiros passos. Pressinto que a arte é um acto de fé, como tudo o que importa nesta vida. E, também como tudo o que importa na vida, igualmente maltratada. Paolo Sorrentino mostra-nos isso, precisamente. De como a malta prefere alimentar-se do blá blá blá de meia-tigela e da linha branca, em alternativa à sopa quente e à paixão; de como gosta de apresentar-se vestida de colagem e recolagem, decotes, lantejoulas e pele esticada a custos mil, nas festas alimentadas ao som do bum bum bum alienatório, substituto grosseiro das batidas do coração mas nada impeditivo do arrazoado diálogo de narcisos (talvez por ser coisa de surdos); ou de como se entrega ao infrutífero sexo casual, com o entusiasmo letárgico dos moribundos. Isso e o resto, feito de protocolo mandatório e jaculatória hipocrisia, sem esquecer a violência que recai sobre a criança que pinta (sobre o artista), aqui usada como animal de circo. Show off desta infeliz humanidade off, qual cultura de pacote, esse caldo moderno a contrariar o caldo primitivo do planeta, onde a vida se desenvolveu.
O plástico traz uma beleza bruta às cenas do filme, atirando-nos com a verdade aos olhos: o plástico é lixo. Se olharmos em volta, por toda a parte veremos plástico sem arte. O desaparecimento do belo é um indicador preocupante da perda do mundo. Mas então, onde está a grande beleza? Certamente no oposto. No silêncio, na simplicidade, na natureza, na naturalidade, no sentir, no espanto, no medo, na alegria, no sublime, nas epifanias, na autoridade (de autoria), na autenticidade … ou, como me disse um amigo, no afecto, o sinónimo de mimo, ternura, carinho, apego, afago, afeição, atenção, vínculo, desvelo e cuidado. Permitam-me que traga Saramago à prelecção: «enquanto as vamos nós aqui saboreando [às palavras] vão eles [aqueles que (as) vivem] fazendo o que elas dizem, não é nada connosco, nós só sabemos de palavras».
A arte, uma das expressões do belo, parte dos gestos íntimos e apaixonados do artista para chegar ao outro, ao público, em forma de amor, não sendo nunca estéril. Se o for, estamos perante uma masturbação que satisfaz apenas uma necessidade e que nada acrescenta de belo porque não há partilha. Jep Gambardella imaginava o mar no tecto do seu quarto, mas nada mais que isso. A sua amiga não conseguiu ver o mar no tecto, porque vivia aquém disso. A vida masturbatória do escritor impediu-o de publicar livros durante 40 anos. Na sua vida apenas havia publicado um. O desejo de ser o mais mundano de todos os mundanos fê-lo esquecer que a arte, a boa arte, é a mais suprema das coisas mundanas, a que traz significado, profundidade e valor estético às coisas do mundo. Pois então que comece o romance, esse truque da imaginação, «no fundo é apenas um truque, sim, só um truque», disse-nos Jep Gambardella, no final do filme.

Post scriptum: Tenho receio que a humanidade venha a perder a alegria, o nosso mais concreto truque.

(fc/junho2023)



quinta-feira, 2 de março de 2023

«Os Irmãos de Leila», do cineasta iraniano Saeed Roustayi

 









O realizador iraniano Saeed Roustayi coloca-nos na sala, no quarto, na casa-de-banho, na cozinha, no corredor, nas escadas e no terraço da casa onde mora uma família disfuncional: o pai Esmail, falido, desvalido e viciado em ópio; a mãe, mulher conformada e obediente à desvirtude do marido; a filha Leila, que mantém a família, influencia os irmãos e desafia o pai; o filho Alireza, desempregado e pouco corajoso; o filho Parviz, que ganha a vida a limpar casas-de-banho, a comer e a fazer filhos; o filho Manouchehr, envolvido em esquemas fraudulentos de enriquecimento rápido; e o filho mais novo, Farhad, musculado e alheado da realidade social. 

A intimidade desta família toca-nos a pele e a realidade da ficção entra-nos corpo adentro, sem pedir licença. Encolhemo-nos na cadeira quando o velho Esmail se apequena, agigantando-se no ecrã; quando, sempre dobrado, se humilha ou humilha, não se respeitando a si nem respeitando os outros, que são os seus filhos; ou quando recebe o aplauso da família, no momento em que se senta na cadeira do patriarca; ou quando grita, fuma, come, urina ou defeca; ou quando leva uma bofetada da filha. Humores corporais, humores errantes, humores fracturantes, humor negro, que saltam da tela e nos atingem assim, a cru. Tudo serve para trazer à «sofreh» o tema que percorre todo o filme: a dignidade.  

A história passa-se em Teerão, onde vivem 12 milhões de habitantes, uma cidade como muitas outras do mundo: desigual. Os pobres da zona Sul nunca chegarão a ricos da zona Norte e as mulheres pobres da zona Sul nunca chegarão a ser gente nem a Sul nem a Norte. Talvez uma herança da guerra, dos embargos internacionais e do retorno à ideologia islâmica, ou melhor, certamente, uma herança da condição humana globalmente alienada, que afasta os homens da humanidade e os empurra para a animalidade.

A família de Esmail vive na zona Sul, aglomera-se por ali, na urbanização decadente, nos hospitais públicos e nas filas para o subsídio de desemprego. Leila e Parviz trabalham no centro comercial na zona Norte. Leila acredita existir a possibilidade de a sua família escapar à pobreza através da compra de uma loja, onde todos os irmãos possam trabalhar em modo próprio. Uma oportunidade que nasce da futura transformação de uma casa-de-banho em três lojas, mesmo ali, no centro comercial onde trabalha. Nenhum dos irmãos de Leila, nem a própria, têm dinheiro para a compra da loja, precisam das 40 moedas de ouro que pertencem ao pai, mas o pai precisa delas para ocupar, com honra, o lugar de patriarca-mor da família, como mandam os costumes e também o filho do patriarca anterior. Entre a honra do pai e uma vida mais condigna dos filhos, a família vê-se dividida e confrontada consigo mesma, envolvendo-se numa sucessão de conflitos e confusões, sem que se vislumbre um final feliz.

Leila é o soldado desta batalha pela dignidade, fá-lo em nome da família, numa cultura onde a mulher tem de se sujeitar ao homem e uma filha ao pai, não importando quão desprezível ele possa ser; ou quão irracional possa ser (é) a líbido do poder sobre os outros; ou quão insustentável é a fluidez do mercado financeiro, bastando um tweet de um presidente, na outra ponta do mundo, para alterar o valor do ouro que se tem em mãos e tramar quem confia nas regras do jogo. No final, sobra o desconsolo e a impotência, servidas juntamente com a comida, como de costume, na «sofreh», a toalha tradicional iraniana que se estende no chão e em torno da qual todos se sentam, na hora das refeições.

Saeed Poursamimi e Taraneh Alidoosti estão extraordinários nos papéis de Esmail e de Leila, mas os restantes actores do elenco não lhes ficam atrás: Navid Mohammadzadeh, Payman Maadi, Farhad Aslani, Mohammad Almohammadi, Navereh Farahani e Mehdi Hoseininia.  A excelente fotografia, sob a responsabilidade de Hooman Behmanesh, é parte importante no sucesso do filme.  

FC/março2023

Tár

 
















"Tár" é o último filme de Todd Field, com Cate Blanchett a dar corpo à personagem principal e um forte elenco de actores secundários, dos quais destaco Nina Hoss. A história está centrada numa única personagem, Lydia Tár, a primeira mulher a ocupar o lugar de maestro na Orquestra Filarmónica de Berlim. Tár prepara-se para a gravação ao vivo da Sinfonia n.º 5 de Gustav Mahler (aqui, somos esmagados pela música), lançará em breve um livro sobre si e encontra-se em processo de criação de uma obra musical que dedicará à filha. Uma mulher de sucesso, com controle sobre todos os aspectos da sua vida, poder sobre os demais, fama e reconhecimento; e que não esquece a sua caixa de comprimidos. Assim começa e se demora o filme, que não tem a ver com a homossexualidade, naturalmente assumida por Tár e aceite por todos, nem com a igualdade de género em posições de liderança, uma vez que a qualidade do seu trabalho como maestrina é indiscutível. 

Com uma sensibilidade particular aos sons, Tár destacou-se na área da música erudita desde muito cedo, quando ainda vivia na sua distante e indistinta América. O esforço que colocou na ascensão ao palanque, ao qual sobe com enorme tensão quando se trata de espectáculos e com enorme determinação quando se trata de ensaios, é proporcional ao acto enlouquecido de derrubar o colega que a irá substituir. Não a ouvimos tocar para além de algumas breves notas no piano, tropeçando sempre na mesma, ao longo do filme. A criatividade parece não lhe ser fácil. A forma como dispõe das pessoas, inclusive da sua parceira, é calculada e fria, revelando um carácter premeditado, ambicioso, focado e desapaixonado. 

E é precisamente aqui que se abre espaço para o que é central neste filme: o poder, a prepotência e a volatilidade de ambos quando se confrontam com outros poderes, nomeadamente os poderes da moral, com letra de lei e escândalo público, quando se vê a braços com o suicídio de uma jovem; e da paixão (ou simples desejo sexual ou talvez apenas a vontade de dominar, tudo aqui é hipótese) por uma jovem, da qual não consegue obter sequer um abraço. 

Mas Todd Field dá-nos outros temas para pensarmos. Por exemplo, a questão do tempo (a cadência e o ritmo) enquanto "ponto fulcral da interpretação" na música, como nos explicará Tár, alargado a toda a arte; na esteira desta reflexão, a questão da relação da arte com a moral; ou mesmo o que nos pode trazer o novo mundo, com as orquestras reduzidas a bandas sonoras de videojogos, como vemos no final do filme.

De Cate Blanchett, a confirmação de que é uma das mais extraordinárias actrizes do nosso tempo. Da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir, a grandiosidade da banda sonora.

fc/fev2023


Diário do Alentejo - a entrevista






ARTES 

LUÍS MIGUEL RICARDO 

FERNANDA CUNHA: “SE LISBOA É A MINHA PROSA, GARVÃO É O MEU POEMA”

Fernanda Cunha, filha e neta de alentejanos, nasceu em Lisboa em 1964 e tem três filhos. É licenciada em Biologia, pela Faculdade de Ciência de Lisboa, pós-graduada em Ciências da Educação, pela Universidade Autónoma de Lisboa, e mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente, pela Faculdade de Letras da Lisboa. Esteve seis anos no ensino público e, desde 1995, que trabalha no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, com passagem pelo Gabinete do Secretário de Estado do Ambiente, Humberto Rosa (XVII Governo, 2008), e pela Direção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano (DGOTDU). Entre os anos de 2011 e 2015 foi presidente da Assembleia de Freguesia de Garvão. Atualmente integra os órgãos sociais da Associação Cultural «A Morte do Artista» e do Clube de Ténis da Amadora. E para além desta panóplia de afazeres e responsabilidades, Fernanda Cunha escreve: literatura em formato de romance e em registo de artigo. E do seu vasto território de textos publicados destacam-se: A paisagem e as palavras que lá estão. Levantado do chão, um romance político (2012) e Negócios Humanos in Caderno Fantasma Útil (2013), ed. Apenas Livros; O Luís Miguel quer ir para o Panteão Nacional in B.I. – caderno de identidade (2017), ed. By The Book; A noite não se acredita, sente-se, in Dark Parables, de Paulo Romão Brás (2011); A beleza serve-se fria, in “Revista Blimunda # 32” (Fundação Saramago, 2015); assinou a rubrica «Cheirinho de alecrim», in “Jornal Regional Costa a Costa”, desde Setembro de 2011 até à sua extinção. Atualmente é escritora residente da revista “A Morte do Artista”, e alimenta um blogue pessoal (http://enquantooazinhoarde. blogspot.com/). 

Que ligação mantém com o Alentejo? 

A minha alma é alentejana, não tenho como escapar. O Alentejo é o meu nicho afetivo e Garvão o meu lugar. Os meus pais e o meu filho mais velho moram cá, por isso, mas não só por isso, venho com frequência a Garvão. Venho em busca da oralidade, do humor subtil, do saber prático, da firmeza de caráter e da resistência que desde sempre admirei nas gentes do Alentejo. Venho aconchegar-me no silêncio quente, por excelência, o lugar da utopia, e comer pão quente, barrado com água-mel e queijo de ovelha. Se Lisboa é a minha prosa, Garvão é o meu poema. Tenho sempre de regressar.

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? 

Não considero que tenha vocação para as letras, escrever não é fácil para mim. Não sou uma escritora. Sou, antes, uma leitora que se apropria das palavras que estão pacientemente à espera de serem resgatadas dos livros, sejam literários ou científicos, mas também dos filmes, da música, do teatro, da pintura ou de uma boa conversa, onde me demore o suficiente para agitar a imaginação. Cresci sem algoritmo nem vertigem digital, por isso, sobrou-me tempo  para ler. Lia pelo prazer de ler, descobrindo, à medida que lia, que o mundo tendia para o infinito e que nos apropriamos dele através das palavras. Foi em Garvão, a terra onde o meu pai nasceu e cresceu, e onde passo as minhas férias desde pequena, que descobri a magia e a importância lúdica do livro. Tinha 13 anos quando me foram oferecidos dois caixotes com minúsculos livros românticos e de cowboys. Li-os todos nesse verão. Sem sair do quarto, experimentei as emoções dos heróis e dos anti-heróis, ri com o inesperado e com o absurdo, visitei lugares diferentes e enterneci-me com as paixões correspondidas. Havia vida naquelas folhas em miniatura. Desde então, não mais parei de procurar prazer num livro. O prazer de aprender, de me inspirar, de descodificar ou simplesmente o de me emocionar. A leitura é um desafio que fui apurando com o tempo, um jogo inconsciente e quase erótico, porque também se lê com o corpo, entre mim e o autor. Aprecio a forma como soa o texto, gosto da crueza e do humor. A minha escrita veio de mão dada com Saramago e com o seu extraordinário Levantado do Chão

Quais as motivações para escrever? 

O que me impele a escrever é a estranheza do mundo, o absurdo, o incompreensível, o novo e o incontrolável. A escrita ajuda-me a analisar, de forma lenta e desapaixonada, temas e tramas que me apaixonam. Faço-o por rebeldia, com um entusiasmo estético quase infantil e um propósito político possivelmente ingénuo. O ponto de partida é sempre duro, com recolha da informação e a construção do primeiro borrão. A etapa seguinte é animada, jogo com as palavras que reuni, sem me preocupar com o fim. As palavras nunca estão sós, atrás delas virão outras, só preciso de prestar atenção, desencaixá-las e tornar a encaixá-las. Como há uma certa marotice nas palavras, surpreendo-me sempre com o resultado. Só páro quando o texto me faz sentido. 

Qual o registo literário de eleição? 

É difícil falar sobre o meu registo literário, não sei sequer se terei algum. Prefiro deixar essa análise para quem lê. Mas se tiver de responder, direi que cada texto procura ser uma reflexão aberta sobre determinado aspeto da condição humana. Talvez lhe possa chamar ensaio ficcionado ou ficção ensaiada ou nem uma coisa nem outra. 

O que é “A Morte do Artista”? 

“A Morte do Artista” é um grupo formado por quatro amigos: Manuel Halpern, João Eduardo Ferreira, Paulo Romão Brás e eu. Nasceu em maio de 2015, numa leitura encenada de excertos dos nossos próprios livros, no palco da S.I. Guilherme Cossoul. Meses mais tarde, no lançamento de Dark Parables de Paulo Romão Brás, tornámos a ler textos para os presentes. Ficou-nos a vontade de fazer mais. Por considerarmos que fazer publicidade aos nossos próprios livros é a morte do artista, foi esse o nome escolhido para o grupo. Desde 2017 que editamos a revista literária “A Morte do Artista”, cuja periodicidade incerta anual já conta com quatro números, nos quais participaram 45 autores, com trabalhos originais. O quinto está preparado para ser lançado. Cada número tem um tema e é dedicado a um artista consagrado. Mário de Carvalho, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge e Adriana Calcanhotto foram os nossos autores consagrados; «Aprender a cair para cima», «O Outro», «A Mentira» e «Terra de Ninguém» os temas escolhidos. Mais recentemente, criámos a Associação Cultural A Morte do Artista. Sob a sua chancela, já publicámos dois livros: O Círculo Curvo das Noites, de João Eduardo Ferreira & Paulo Romão Brás, e Escama, Rímel, Carapaça, de Manuel Halpern & Alexandra Ramires. 

Dos trabalhos desenvolvidos, alguns que sejam mais marcantes? 

O meu primeiro grande texto, basilar e impulsionador de todos os que se lhe seguiram, foi a dissertação de mestrado, onde fiz convergir três autores distintos: o político Al Gore, com a urgência planetária das alterações climáticas; o cineasta Jean-Luc Godard, com o conflito israelo-palestino; e a filósofa Hannah Arendt, com a condição humana. A minha liberdade literária começou aqui. Para mim, o texto seguinte é sempre o mais marcante, pois contém nele o que cresci com o processo de escrita do texto anterior. 

Que sonhos literários moram em Fernanda Cunha? 

Gostaria, um dia, de escrever uma tese sobre a relação entre o sensível e o inteligível e afirmar a importância da atitude estética no juízo político, ou seja, trazer à consciência de todos a relevância do juízo de gosto na construção de um mundo comum.

(Publicado em 29 de Julho de 2022)
 

30 de Fevereiro





O amor, esse acaso que escapa à razão e à convenção, qual desalinho em contratempo, indiferente ao Sol, à Lua e ao calendário, o amor, dizia eu, 

traz-nos a estranheza das partículas, o paralelo das contradições e a importância da borboleta. Confirma-se o princípio da incerteza em Edward Lorenz, Albert Einstein e todos os demais. 

Sem antítese que o desminta, eis o 30 de Fevereiro, um dia bom para amar.  

FC/30fevereiro2023


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Paleta de afectos













Todos os mamíferos têm, algures no cérebro, uma paleta de afectos dinâmica, única e intransmissível. Os afectos misturam-se entre si desde que nascemos, ou talvez antes, à medida das experiências vividas, e vão pintando o nosso lado interior de sentido e de sentimento. A moral não mora aqui. É com esta paleta que vamos a jogo.

(fc/janeiro2023)

Caminhos














A memória é gestante. Nascemos de uma bolsa de água e fazemos o caminho por terra com a mesma determinação dos rios.

Boa sorte, meus putos. ❤️
(fc/janeiro2023)

Dos mal-entendidos


















Dizem os conspiradores das teorias da conspiração que as orelhas estão ao serviço da censura e da desumanização, ao suportarem os muros de TNT feitos para nos calar o oxigénio que nos anima e amordaçar a boca por onde se emagrece qualquer fome. Dizem essas vozes, em coro de negação, que as orelhas se juntaram aos tipos que nos querem transformar em seres de circuito fechado, apodrecido e indistinto, para mais fácil manipulação.

Não se iludam, as orelhas foram recrutadas para uma guerra viral, não para uma guerra de poder. No combate ao vírus, demostram ser tão importantes como qualquer outro agente da linha da frente. Apesar do esforço elástico imposto, as orelhas, quer sejam descaradas ou tímidas, demonstram ser tão ou mais fortes que qualquer osso, ao manter a forma e a função primordiais, sem quebrar ou fraquejar.

São guardiãs do ouvido, o órgão da audição e do equilíbrio, com infalível habilidade para detectar de que lado vem a onda sonora, se da esquerda, da extrema-esquerda, da direita ou da extrema-direita; e mantêm o apoio de retaguarda aos olhos, sempre prontas a auxiliar a visão mais dificultada. Têm também o secreto poder de libertar momentaneamente o corpo de todas as amarras, quando são tocadas pelo calor húmido de uma confissão em sussurro. São a predileção e a perdição dos amantes.

As orelhas nunca seriam baionetas ou marionetas da tirania. Por mais que as dobrem ou adornem, as orelhas permanecerão firmes aliadas dos sentidos e livres de todos os preconceitos. As orelhas não são ovelhas.

FC/Jan2022
Todas as reações:
João Eduardo Ferreira, Paulo Cunha e no 3 outras pessoas

Bleu













Três Cores: Azul (Trois Couleurs : Bleu) é um filme de 1993, assinado por Krzysztof Kieslowski, com a jovem Juliette Binoche no papel principal (Julie). Trata-se do primeiro filme de uma trilogia que tem como tema as três cores da bandeira francesa associadas aos ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. «Azul» corresponde à Liberdade.

Pelo título do filme, poder-se-ia pensar que estamos perante um filme político, mas «Bleu» apenas abre a possibilidade de um debate político sobre a União Europeia porque ao longo do filme há uma música que se vai compondo e que irá celebrar a Europa dos Doze e o Tratado Maastricht, facto histórico que poderá, ou não, ser associado à liberdade, um dos ícones da Revolução. O filme não avança mais que isso. A cor azul percorre todo o filme, mas é uma cor de dor e dor não é liberdade. Neste caso, o azul é a mais dura das revoluções.
Julie é a única sobrevivente de um desastre de automóvel, no qual morrem o marido, famoso compositor e maestro, e a filha de apenas cinco anos. Inicia um processo de desapego das suas pessoas e coisas, não por luto, mas por luta contra si. Julie é compositora, apesar da sua criação nunca ter sido assinada com o seu nome. Ao morrer o marido, que assumia as suas obras, ela fica impossibilitada de criar sem pôr em causa o bom nome do marido, coisa que por amor não fará. O filme é precisamente sobre isto, sobre a importância da arte para o artista. Não haverá dor maior que a morte de um filho, mas também não haverá fractura maior do que aquela que impede um artista de se cumprir na sua arte.
Mas o filme é também sobre o amor, porque o amor tem este mau hábito de dar as cartas e fazer-nos sujeitar ao jogo. Neste caso, temos um amor que nunca foi (o do marido), um amor que se esfuma quando percebe que nunca teve retorno (o de Julie) e um amor devoto (o do assistente do marido). Foi este amor devoto, discreto, desinteressado e concreto que levou a arte de volta à sua autora (à sua amada), permitindo-lhe a redenção. Só depois disso, foi possível para Julie fazer o luto da filha.
Um filme extraordinário, profundamente estético, que nos confirma que a liberdade mora na arte e o amor é o melhor caminho para lá chegar.

(fc/julho2022)

O mais lúcia-lima fim de festa que conheço






Dia de preguiça, paredes-meias com a preguiça dos domingos, pausa obrigatória na casa de partida, jogos de tabuleiros desarrumados, deixa-los estar, a mesa com restos do dia de ontem, é o bastante, um livro não lido ao alcance da mão, e que bom é ter um livro para ler e não o fazer, o poeta tem razão, um filme europeu no telecomando, os pés aquecidos pelo carinho do Natal e o ócio como companheiro de sofá. Nem comemorações nem ambições nem chateações, cada um devolvido a si mesmo e ao seu Brutus.

(fc/1janeiro2023)