domingo, 5 de novembro de 2023
Gaza
quinta-feira, 12 de outubro de 2023
No mundo do Outro
«A
humanidade é um enorme fardo para o Homem»
Hannah Arendt
Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados,
uma em cada cento e treze pessoas em todo mundo é solicitante de refúgio,
deslocada interna ou refugiada, forçada a sair da sua casa e do seu país, muitas
das vezes deixando para trás a identidade que a distingue, o valor mais
precioso do ser humano, outras das vezes perdendo a própria vida. Apesar do
esforço investido na confiança e na igualdade pela «grande sociedade europeia»,
nascida dos destroços da Segunda Guerra Mundial, somos chegados, décadas
depois, a uma sociedade estilhaçada pelo individualismo, normalizada pela
indiferença, com a esfera pública e política destorcida pelo sprint das super-organizações de
interesse privado, movidas por uma lógica do poder pelo poder, com a banalidade
e a corrupção a ganharem um perigoso destaque. Nem os recém-deslocados nem os
residentes poderão sentir o mundo como a sua casa, uma vez que a vizinhança em
ambos não será reconhecida. Sessenta milhões de pessoas vindas de todo o lugar para
lugar nenhum são a confirmação do fim do mundo comum. Cento e treze em cada
cento e treze pessoas serão párias de si e párias da Humanidade. Como foi
possível chegarmos aqui? Para compreender os fenómenos da banalidade e do mal,
debrucemo-nos um pouco sobre o holocausto, a expressão extrema do mal no mundo,
muito para lá das guerras, das perseguições ou das lutas pelo território,
dirigido aos judeus, um povo que há mais de dois mil anos vive na condição de outro, sem nunca ter conseguido uma casa
política.
Há pouco mais de cem anos, na velha e
monárquica Viena vivia-se um mundo sem perturbações ou revoluções,
depositava-se confiança no idealismo liberal e cumpria-se a ordem planificada
pelo parlamento, eleito democraticamente. Um mundo confiante, vivido sem
pressa. Nele, os judeus chegados dois séculos antes, encontraram o ambiente
perfeito para as suas aspirações artísticas e rapidamente ascenderam ao lugar
de guardiões da cultura vienense, deixada como herança pela Imperadora Maria
Theresia. A assimilação social pelos círculos não-judaicos foi a forma de não
sofrerem o preconceito anti-semita, emergente no século anterior. A elite
judaica considerava-se, desta forma, cidadã de pleno direito. Trataram o
anti-semitismo, que é uma questão política, como se fosse uma questão social. Ora,
a igualdade social, marcadamente exclusiva, é diferente da igualdade política,
necessariamente inclusiva, mas isso foi uma lição que não lhes chegou a tempo. O
ilustre império da cultura e da arte foi convertido num posto avançado do regime
nazi, a partir do qual o nacional-socialismo desagregaria a Europa inteira. A inexistência
de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos e garantias ao judeu, em
conjunto com a assimilação social, que ajudou a criar a ideia do judaísmo como
um atributo inato, permitiu o extermínio do povo judaico durante o regime
totalitário do III Reich, período em que a Alemanha se separou em duas: os
alemães e os outros.
Do outro lado dos outros encontrava-se Hitler, que teve, desde logo, a clara noção da
importância da opinião pública, não somente para a conquista de votos (o regime
nazi nasceu do voto do povo), mas também, e sobretudo, para a concretização do
seu perverso objectivo: a prática de crimes contra a Humanidade. O
nacional-socialismo utilizou a mentira organizada para cultivar o medo e
justificar as medidas radicais e imorais sem qualquer possibilidade de debate,
categoricamente eliminado da esfera pública e política. A consciência colectiva
da necessidade de salvar o povo da miséria, da pobreza e do desemprego, com a
certeza de se tratar de uma situação sem alternativa, foi a pedra angular para
uma ideologia que se resumia ao seguinte: não há lugar para o outro (nem outras opiniões nem outros
povos) porque o outro faz perigar a nossa vida. Por via de uma propaganda
magistralmente organizada, a mentira foi tantas vezes dita que se tornou
verdade, permitindo a Hitler arrastar multidões para o mundo ideológico nazi. O
incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, e as prisões ilegais que se
efectuaram nessa noite, bem como a Kristallnacht,
em 9 e 10 de Novembro de 1938, com mais de 250 sinagogas queimadas, cerca de
7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus
mortos, cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueados, foram meros actos
de propaganda. Dali em diante, apenas se poderia esperar o pior.
A mentalidade alemã encontrava-se de tal
maneira impregnada de ilusão e embuste que o extermínio de deficientes, ciganos,
homossexuais, dissidentes políticos e judeus, seus vizinhos, amigos e
familiares, todos cidadãos europeus, foi quase considerado normal. Aliás,
normal e determinado por lei. Despojados do emprego, das casas, dos espaços
sociais, das escolas e das universidades, do apelido, do nome próprio, das
emoções e de todos os direitos, incluindo o direito à alimentação e à saúde, os
judeus foram transformados em cadáveres vivos, indesejável escória social cuja
imagem, largamente divulgada, confirmava a ideia de serem pedintes sem valor e
escumalha perigosa para a qualidade de vida alemã. Inúteis e supérfluos, os
judeus alemães e europeus, eram agora oficialmente os outros. Estavam a mais, não deveriam habitar o planeta. A sua erradicação
de todos os territórios ocupados foi aplaudida por uma maioria ensandecida pela
propaganda xenófoba, animada pelo culto à personalidade do Führer e orientada
pela mão invisível da burocracia.
A Solução Final é, pela sua forma mais do
que pelo número de mortos, o acontecimento mais brutal da História. Como foi
possível, nos guetos e nos campos da morte, anular a compaixão e a piedade ou
mesmo o sentimento de culpa em pessoas que não são homicidas ou sádicas por
natureza? O truque é a autocomiseração, explica-nos a filósofa Hannah Arendt. Se
estivermos mergulhados no nosso próprio sofrimento, torna-se difícil ver o
sofrimento no outro, portanto, bastou
inverter os instintos naturais de piedade e compaixão e dirigi-los para si
mesmos: em vez de dizerem «fiz coisas horríveis a estas pessoas», dizem «tive
de ver e fazer coisas horríveis, foi um fardo muito pesado que carreguei nos
ombros». Quanto ao sentimento de culpa, que implica a consciência da culpa e o
sentido de responsabilidade, foi anulado pelo facto de considerarem que estavam
apenas a cumprir ordens: «tiveram de o fazer». Onde não há responsabilidade não
há culpa, onde não há culpa não há crime, onde não há crime não há vítimas, resume-nos
Arendt. E se não houver vítimas, as questões morais e éticas nem sequer se
colocam. Mas houve vítimas. Pessoas que foram torturadas por médicos em
experiência e pessoas que foram assassinadas por carrascos e vítimas-carrascos
que colaboraram entre si na prossecução do mal.
O holocausto nazi evidenciou duas
realidades que se julgavam impossíveis: a destruição da moral numa sociedade
organizada e a prática de crimes por homens vulgares. É neste contexto que
surge o conceito arendtiano da banalidade
do mal ou banal falta de pensamento, que não é congénita nem adquirida mas que
provém de uma ausência de mundo que empurra os homens para níveis próximos da
animalidade, incapazes de pensar a partir do ponto de vista do outro, incapazes de distinguir a
legalidade jurídica da legitimidade moral, incapazes de desobedecer face à crueldade.
Homens desprovidos de pensamento e imaginação, cuja leviandade abriu portas à
banalidade do mal. O povo alemão não era alienado da norma, era a própria norma,
pois viveu-se e morreu-se de acordo com o mal burocratizado para o qual bastou um
sistema hierarquizado e impessoal e competências normalizadas por procedimentos,
para se alastrar como se fosse uma praga incontrolável. A moral não é um valor
absoluto assente num imperativo categórico, antes pelo contrário, resulta de
algo que flui nos homens: o pensamento. Na ausência deste, o mal torna-se
possível, banal e incontrolável.
O pensamento é a faculdade que permite a
cada pessoa distinguir o bem do mal e o belo do feio. Sócrates descreve-o como um
conjunto de perguntas e respostas entre o eu
e si mesmo (a consciência), tão
rápido e silencioso que a sua estrutura dialógica é difícil de detectar, de
adulterar ou mesmo anular, apesar de ser possível adiar. Acontece sempre que
estamos fora do mundo, a sós connosco mesmos. Nesses momentos, a unidade eu cinde-se em dois eus e conversam de si para si. Quando deixamos de estar a sós, quando
o mundo exterior nos interrompe a solidão, voltamos a ser um perante os outros, mas
acrescentados com o juízo construído a partir do diálogo interior, que nos trouxe
um novo ponto de vista relativamente à circunstância envolvente. O pensamento
é, desta maneira, um diálogo antecipado com os outros. Qualquer pessoa privada de solidão ou de imaginação é
incapaz de ganhar consciência. Torna-se indistinto da norma, banal cumpridor de
regras, funcionário de qualquer coisa, que parte da regra geral para a aplicar
a todos os particulares, sem qualquer espírito crítico. Por insegurança, recusa
a pluralidade e a diferença tanto no outro
como em si mesmo. Limita-se a obedecer.
O pensamento é a condição necessária para
o exercício ético mas não é, por si só, condição suficiente para uma
ética-política, ou seja, para o pensamento e acção em conjunto. Para isso é
necessário tornar o pensamento, ou melhor, o juízo que dele resultou, visível através
da opinião. O juízo, pessoal e transmissível, que se constrói a partir de
eventos particulares, considerados sempre na sua contingência e sem preconceito,
tem a capacidade de estabelecer uma ligação entre a subjectividade individual e
a intersubjectividade da vida pública e social das comunidades políticas,
reconhecendo-lhes as diferenças. São eles que estão na base da construção da
opinião pública e de um sentido comum democrático. O juízo não admite, por
necessidade de pluralidade e de liberdade, a exclusão de partes do mundo, ou
seja, a exclusão dos outros.
A opinião comum encerra em si a capacidade
de rejeitar as verdades racionais (as verdades matemáticas, as verdades
científicas e as verdades filosóficas) e as mentiras intencionais, mas não as
evita. A facilidade com que a verdade de facto é interpretada como opinião ou
substituída por uma mentira intencional, é uma ameaça a ter em conta. No
primeiro caso, tal confusão desvaloriza a importância política quer da opinião
quer da verdade de facto, ambas fundamentais na prática democrática; quanto à
mentira intencional, se se tratar de um mentiroso privado que tenta a sua
sorte, não oferece perigo, mas a mentira organizada, como vimos, é uma arma
potente por conter em si uma intencionalidade não revelada. Se for confirmada
por maioria de opinião, é aceite como verdade de facto e ganha a força dos seus
apoiantes.
Falemos agora de outra lição não aprendida
pelos judeus. Após o holocausto, não obstante o genocídio, o horror sofrido e a
deslocação forçada, os judeus continuaram a pensar o mundo em termos totalitários.
Nas imagens históricas divulgadas por Ada Ushpiz no filme Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt (2015), podemos ouvir as
palavras proferidas no Congresso Sionista de 1944, quando foi reivindicado o
direito a um Estado judaico que deveria abranger toda a Palestina: «… essa
reparação será o Estado judeu uno, livre e democrático de Israel, ainda que
pouco signifique para os outros povos». Os palestinianos estavam excluídos da
solução, ainda que habitassem o território que lhes pertence por direito e
História. A divisão entre os judeus e os outros
ficou clara. Um antagonismo racista e chauvinista sobre aqueles que eram seus
vizinhos e que ficaram obrigados a duas opções: emigração voluntária ou
cidadania de segunda. Escolheram a terceira: a guerrilha. O mundo comum
desaparece sempre que se perde uma parte dele, ou seja, sempre que um povo ou
um vasto grupo de pessoas ou mesmo uma pessoa, são considerados supérfluos, ainda
que tenham sido co-constructores deste mundo que agora lhes recusa a
existência.
Vive-se hoje, na Europa, no Médio Oriente
e em África, o drama dos refugiados. Um mundo de gente fugida à fome e à
guerra, arrancada dos laços sociais e familiares, sem sentido de vida, sem discurso,
emagrecida, desabrigada, desamparada, desesperada, desnacionalizada, destituída
de direitos e de dignidade, esvaziada de identidade, tratada como supérflua por
um outro mundo dominado pela economia e pela estatística do comportamento que
não admite espaço para a diferença, obcecado pela segurança do status quo. A lição da História, cada um
toma-a como lhe convém. O racismo e a xenofobia já ganharam terreno, pois as soluções
totalitárias fazem-se sentir um pouco pela Europa, com o conveniente alerta de
que a dignidade humana se encontra ameaçada pela miséria social e económica,
dadas como irresolúveis. Se forem criadas situações-limite, a necessidade impor-se-á
à verdade, abrindo a oportunidade para os governantes justificarem a solução
que lhes é conveniente. A possibilidade de retorno ao passado paira no ar já
contaminado, e as suas consequências serão imprevisíveis, pois vivemos tempos
diferentes. Do lado de cá, a mesma sociedade de massas, escola do supérfluo, onde
a ausência de sentido é produzida diariamente, em permanente ode à indiferença,
intensificada pela realidade virtual que veio fragilizar a soberania dos
Estados e originar novos focos de poder. Do lado dos outros, a dor física da inumanidade, o castigo sem crime, a
expressão viva do «supérfluo». Uns e outros
cada vez mais incapazes de pensar. A banalidade do mal aguarda a sua
oportunidade.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
Sobre o filme «A Grande Beleza», de Paolo Sorrentino (2013)
quinta-feira, 2 de março de 2023
«Os Irmãos de Leila», do cineasta iraniano Saeed Roustayi
Tár
"Tár" é o último filme de Todd Field, com Cate Blanchett a dar corpo à personagem principal e um forte elenco de actores secundários, dos quais destaco Nina Hoss. A história está centrada numa única personagem, Lydia Tár, a primeira mulher a ocupar o lugar de maestro na Orquestra Filarmónica de Berlim. Tár prepara-se para a gravação ao vivo da Sinfonia n.º 5 de Gustav Mahler (aqui, somos esmagados pela música), lançará em breve um livro sobre si e encontra-se em processo de criação de uma obra musical que dedicará à filha. Uma mulher de sucesso, com controle sobre todos os aspectos da sua vida, poder sobre os demais, fama e reconhecimento; e que não esquece a sua caixa de comprimidos. Assim começa e se demora o filme, que não tem a ver com a homossexualidade, naturalmente assumida por Tár e aceite por todos, nem com a igualdade de género em posições de liderança, uma vez que a qualidade do seu trabalho como maestrina é indiscutível.
Com uma sensibilidade particular aos sons, Tár destacou-se na área da música erudita desde muito cedo, quando ainda vivia na sua distante e indistinta América. O esforço que colocou na ascensão ao palanque, ao qual sobe com enorme tensão quando se trata de espectáculos e com enorme determinação quando se trata de ensaios, é proporcional ao acto enlouquecido de derrubar o colega que a irá substituir. Não a ouvimos tocar para além de algumas breves notas no piano, tropeçando sempre na mesma, ao longo do filme. A criatividade parece não lhe ser fácil. A forma como dispõe das pessoas, inclusive da sua parceira, é calculada e fria, revelando um carácter premeditado, ambicioso, focado e desapaixonado.
E é precisamente aqui que se abre espaço para o que é central neste filme: o poder, a prepotência e a volatilidade de ambos quando se confrontam com outros poderes, nomeadamente os poderes da moral, com letra de lei e escândalo público, quando se vê a braços com o suicídio de uma jovem; e da paixão (ou simples desejo sexual ou talvez apenas a vontade de dominar, tudo aqui é hipótese) por uma jovem, da qual não consegue obter sequer um abraço.
Mas Todd
Field dá-nos outros temas para pensarmos. Por exemplo, a questão do tempo (a
cadência e o ritmo) enquanto "ponto fulcral da interpretação" na
música, como nos explicará Tár, alargado a toda a arte; na esteira desta
reflexão, a questão da relação da arte com a moral; ou mesmo o que nos pode
trazer o novo mundo, com as orquestras reduzidas a bandas sonoras de
videojogos, como vemos no final do filme.
De Cate Blanchett, a confirmação de que é uma das mais
extraordinárias actrizes do nosso tempo. Da compositora islandesa Hildur
Guðnadóttir, a grandiosidade da banda sonora.
fc/fev2023
Diário do Alentejo - a entrevista
ARTES
LUÍS MIGUEL RICARDO
FERNANDA CUNHA: “SE LISBOA É A MINHA PROSA, GARVÃO É O MEU POEMA”
Fernanda Cunha, filha e neta de alentejanos, nasceu em Lisboa em 1964 e tem três filhos. É licenciada em Biologia, pela Faculdade de Ciência de Lisboa, pós-graduada em Ciências da Educação, pela Universidade Autónoma de Lisboa, e mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente, pela Faculdade de Letras da Lisboa. Esteve seis anos no ensino público e, desde 1995, que trabalha no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, com passagem pelo Gabinete do Secretário de Estado do Ambiente, Humberto Rosa (XVII Governo, 2008), e pela Direção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano (DGOTDU). Entre os anos de 2011 e 2015 foi presidente da Assembleia de Freguesia de Garvão. Atualmente integra os órgãos sociais da Associação Cultural «A Morte do Artista» e do Clube de Ténis da Amadora. E para além desta panóplia de afazeres e responsabilidades, Fernanda Cunha escreve: literatura em formato de romance e em registo de artigo. E do seu vasto território de textos publicados destacam-se: A paisagem e as palavras que lá estão. Levantado do chão, um romance político (2012) e Negócios Humanos in Caderno Fantasma Útil (2013), ed. Apenas Livros; O Luís Miguel quer ir para o Panteão Nacional in B.I. – caderno de identidade (2017), ed. By The Book; A noite não se acredita, sente-se, in Dark Parables, de Paulo Romão Brás (2011); A beleza serve-se fria, in “Revista Blimunda # 32” (Fundação Saramago, 2015); assinou a rubrica «Cheirinho de alecrim», in “Jornal Regional Costa a Costa”, desde Setembro de 2011 até à sua extinção. Atualmente é escritora residente da revista “A Morte do Artista”, e alimenta um blogue pessoal (http://enquantooazinhoarde. blogspot.com/).
Que ligação mantém com o Alentejo?
A minha alma é alentejana, não tenho como escapar. O Alentejo é o meu nicho afetivo e Garvão o meu lugar. Os meus pais e o meu filho mais velho moram cá, por isso, mas não só por isso, venho com frequência a Garvão. Venho em busca da oralidade, do humor subtil, do saber prático, da firmeza de caráter e da resistência que desde sempre admirei nas gentes do Alentejo. Venho aconchegar-me no silêncio quente, por excelência, o lugar da utopia, e comer pão quente, barrado com água-mel e queijo de ovelha. Se Lisboa é a minha prosa, Garvão é o meu poema. Tenho sempre de regressar.
Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?
Não considero que tenha vocação para as letras, escrever não é fácil para mim. Não sou uma escritora. Sou, antes, uma leitora que se apropria das palavras que estão pacientemente à espera de serem resgatadas dos livros, sejam literários ou científicos, mas também dos filmes, da música, do teatro, da pintura ou de uma boa conversa, onde me demore o suficiente para agitar a imaginação. Cresci sem algoritmo nem vertigem digital, por isso, sobrou-me tempo para ler. Lia pelo prazer de ler, descobrindo, à medida que lia, que o mundo tendia para o infinito e que nos apropriamos dele através das palavras. Foi em Garvão, a terra onde o meu pai nasceu e cresceu, e onde passo as minhas férias desde pequena, que descobri a magia e a importância lúdica do livro. Tinha 13 anos quando me foram oferecidos dois caixotes com minúsculos livros românticos e de cowboys. Li-os todos nesse verão. Sem sair do quarto, experimentei as emoções dos heróis e dos anti-heróis, ri com o inesperado e com o absurdo, visitei lugares diferentes e enterneci-me com as paixões correspondidas. Havia vida naquelas folhas em miniatura. Desde então, não mais parei de procurar prazer num livro. O prazer de aprender, de me inspirar, de descodificar ou simplesmente o de me emocionar. A leitura é um desafio que fui apurando com o tempo, um jogo inconsciente e quase erótico, porque também se lê com o corpo, entre mim e o autor. Aprecio a forma como soa o texto, gosto da crueza e do humor. A minha escrita veio de mão dada com Saramago e com o seu extraordinário Levantado do Chão.
Quais as motivações para escrever?
O que me impele a escrever é a estranheza do mundo, o absurdo, o incompreensível, o novo e o incontrolável. A escrita ajuda-me a analisar, de forma lenta e desapaixonada, temas e tramas que me apaixonam. Faço-o por rebeldia, com um entusiasmo estético quase infantil e um propósito político possivelmente ingénuo. O ponto de partida é sempre duro, com recolha da informação e a construção do primeiro borrão. A etapa seguinte é animada, jogo com as palavras que reuni, sem me preocupar com o fim. As palavras nunca estão sós, atrás delas virão outras, só preciso de prestar atenção, desencaixá-las e tornar a encaixá-las. Como há uma certa marotice nas palavras, surpreendo-me sempre com o resultado. Só páro quando o texto me faz sentido.
Qual o registo literário de eleição?
É difícil falar sobre o meu registo literário, não sei sequer se terei algum. Prefiro deixar essa análise para quem lê. Mas se tiver de responder, direi que cada texto procura ser uma reflexão aberta sobre determinado aspeto da condição humana. Talvez lhe possa chamar ensaio ficcionado ou ficção ensaiada ou nem uma coisa nem outra.
O que é “A Morte do Artista”?“A Morte do Artista” é um grupo formado por quatro amigos: Manuel Halpern, João Eduardo Ferreira, Paulo Romão Brás e eu. Nasceu em maio de 2015, numa leitura encenada de excertos dos nossos próprios livros, no palco da S.I. Guilherme Cossoul. Meses mais tarde, no lançamento de Dark Parables de Paulo Romão Brás, tornámos a ler textos para os presentes. Ficou-nos a vontade de fazer mais. Por considerarmos que fazer publicidade aos nossos próprios livros é a morte do artista, foi esse o nome escolhido para o grupo. Desde 2017 que editamos a revista literária “A Morte do Artista”, cuja periodicidade incerta anual já conta com quatro números, nos quais participaram 45 autores, com trabalhos originais. O quinto está preparado para ser lançado. Cada número tem um tema e é dedicado a um artista consagrado. Mário de Carvalho, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge e Adriana Calcanhotto foram os nossos autores consagrados; «Aprender a cair para cima», «O Outro», «A Mentira» e «Terra de Ninguém» os temas escolhidos. Mais recentemente, criámos a Associação Cultural A Morte do Artista. Sob a sua chancela, já publicámos dois livros: O Círculo Curvo das Noites, de João Eduardo Ferreira & Paulo Romão Brás, e Escama, Rímel, Carapaça, de Manuel Halpern & Alexandra Ramires.
Dos trabalhos desenvolvidos, alguns que sejam mais marcantes?
O meu primeiro grande texto, basilar e impulsionador de todos os que se lhe seguiram, foi a dissertação de mestrado, onde fiz convergir três autores distintos: o político Al Gore, com a urgência planetária das alterações climáticas; o cineasta Jean-Luc Godard, com o conflito israelo-palestino; e a filósofa Hannah Arendt, com a condição humana. A minha liberdade literária começou aqui. Para mim, o texto seguinte é sempre o mais marcante, pois contém nele o que cresci com o processo de escrita do texto anterior.
Que sonhos literários moram em Fernanda Cunha?
Gostaria, um dia, de escrever uma tese sobre a relação entre o sensível e o inteligível e afirmar a importância da atitude estética no juízo político, ou seja, trazer à consciência de todos a relevância do juízo de gosto na construção de um mundo comum.
(Publicado em 29 de Julho de 2022)
30 de Fevereiro
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
Paleta de afectos
Todos os mamíferos têm, algures no cérebro, uma paleta de afectos dinâmica, única e intransmissível. Os afectos misturam-se entre si desde que nascemos, ou talvez antes, à medida das experiências vividas, e vão pintando o nosso lado interior de sentido e de sentimento. A moral não mora aqui. É com esta paleta que vamos a jogo.
Caminhos
A memória é gestante. Nascemos de uma bolsa de água e fazemos o caminho por terra com a mesma determinação dos rios.