«A
humanidade é um enorme fardo para o Homem»
Hannah Arendt
Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados,
uma em cada cento e treze pessoas em todo mundo é solicitante de refúgio,
deslocada interna ou refugiada, forçada a sair da sua casa e do seu país, muitas
das vezes deixando para trás a identidade que a distingue, o valor mais
precioso do ser humano, outras das vezes perdendo a própria vida. Apesar do
esforço investido na confiança e na igualdade pela «grande sociedade europeia»,
nascida dos destroços da Segunda Guerra Mundial, somos chegados, décadas
depois, a uma sociedade estilhaçada pelo individualismo, normalizada pela
indiferença, com a esfera pública e política destorcida pelo sprint das super-organizações de
interesse privado, movidas por uma lógica do poder pelo poder, com a banalidade
e a corrupção a ganharem um perigoso destaque. Nem os recém-deslocados nem os
residentes poderão sentir o mundo como a sua casa, uma vez que a vizinhança em
ambos não será reconhecida. Sessenta milhões de pessoas vindas de todo o lugar para
lugar nenhum são a confirmação do fim do mundo comum. Cento e treze em cada
cento e treze pessoas serão párias de si e párias da Humanidade. Como foi
possível chegarmos aqui? Para compreender os fenómenos da banalidade e do mal,
debrucemo-nos um pouco sobre o holocausto, a expressão extrema do mal no mundo,
muito para lá das guerras, das perseguições ou das lutas pelo território,
dirigido aos judeus, um povo que há mais de dois mil anos vive na condição de outro, sem nunca ter conseguido uma casa
política.
Há pouco mais de cem anos, na velha e
monárquica Viena vivia-se um mundo sem perturbações ou revoluções,
depositava-se confiança no idealismo liberal e cumpria-se a ordem planificada
pelo parlamento, eleito democraticamente. Um mundo confiante, vivido sem
pressa. Nele, os judeus chegados dois séculos antes, encontraram o ambiente
perfeito para as suas aspirações artísticas e rapidamente ascenderam ao lugar
de guardiões da cultura vienense, deixada como herança pela Imperadora Maria
Theresia. A assimilação social pelos círculos não-judaicos foi a forma de não
sofrerem o preconceito anti-semita, emergente no século anterior. A elite
judaica considerava-se, desta forma, cidadã de pleno direito. Trataram o
anti-semitismo, que é uma questão política, como se fosse uma questão social. Ora,
a igualdade social, marcadamente exclusiva, é diferente da igualdade política,
necessariamente inclusiva, mas isso foi uma lição que não lhes chegou a tempo. O
ilustre império da cultura e da arte foi convertido num posto avançado do regime
nazi, a partir do qual o nacional-socialismo desagregaria a Europa inteira. A inexistência
de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos e garantias ao judeu, em
conjunto com a assimilação social, que ajudou a criar a ideia do judaísmo como
um atributo inato, permitiu o extermínio do povo judaico durante o regime
totalitário do III Reich, período em que a Alemanha se separou em duas: os
alemães e os outros.
Do outro lado dos outros encontrava-se Hitler, que teve, desde logo, a clara noção da
importância da opinião pública, não somente para a conquista de votos (o regime
nazi nasceu do voto do povo), mas também, e sobretudo, para a concretização do
seu perverso objectivo: a prática de crimes contra a Humanidade. O
nacional-socialismo utilizou a mentira organizada para cultivar o medo e
justificar as medidas radicais e imorais sem qualquer possibilidade de debate,
categoricamente eliminado da esfera pública e política. A consciência colectiva
da necessidade de salvar o povo da miséria, da pobreza e do desemprego, com a
certeza de se tratar de uma situação sem alternativa, foi a pedra angular para
uma ideologia que se resumia ao seguinte: não há lugar para o outro (nem outras opiniões nem outros
povos) porque o outro faz perigar a nossa vida. Por via de uma propaganda
magistralmente organizada, a mentira foi tantas vezes dita que se tornou
verdade, permitindo a Hitler arrastar multidões para o mundo ideológico nazi. O
incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, e as prisões ilegais que se
efectuaram nessa noite, bem como a Kristallnacht,
em 9 e 10 de Novembro de 1938, com mais de 250 sinagogas queimadas, cerca de
7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus
mortos, cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueados, foram meros actos
de propaganda. Dali em diante, apenas se poderia esperar o pior.
A mentalidade alemã encontrava-se de tal
maneira impregnada de ilusão e embuste que o extermínio de deficientes, ciganos,
homossexuais, dissidentes políticos e judeus, seus vizinhos, amigos e
familiares, todos cidadãos europeus, foi quase considerado normal. Aliás,
normal e determinado por lei. Despojados do emprego, das casas, dos espaços
sociais, das escolas e das universidades, do apelido, do nome próprio, das
emoções e de todos os direitos, incluindo o direito à alimentação e à saúde, os
judeus foram transformados em cadáveres vivos, indesejável escória social cuja
imagem, largamente divulgada, confirmava a ideia de serem pedintes sem valor e
escumalha perigosa para a qualidade de vida alemã. Inúteis e supérfluos, os
judeus alemães e europeus, eram agora oficialmente os outros. Estavam a mais, não deveriam habitar o planeta. A sua erradicação
de todos os territórios ocupados foi aplaudida por uma maioria ensandecida pela
propaganda xenófoba, animada pelo culto à personalidade do Führer e orientada
pela mão invisível da burocracia.
A Solução Final é, pela sua forma mais do
que pelo número de mortos, o acontecimento mais brutal da História. Como foi
possível, nos guetos e nos campos da morte, anular a compaixão e a piedade ou
mesmo o sentimento de culpa em pessoas que não são homicidas ou sádicas por
natureza? O truque é a autocomiseração, explica-nos a filósofa Hannah Arendt. Se
estivermos mergulhados no nosso próprio sofrimento, torna-se difícil ver o
sofrimento no outro, portanto, bastou
inverter os instintos naturais de piedade e compaixão e dirigi-los para si
mesmos: em vez de dizerem «fiz coisas horríveis a estas pessoas», dizem «tive
de ver e fazer coisas horríveis, foi um fardo muito pesado que carreguei nos
ombros». Quanto ao sentimento de culpa, que implica a consciência da culpa e o
sentido de responsabilidade, foi anulado pelo facto de considerarem que estavam
apenas a cumprir ordens: «tiveram de o fazer». Onde não há responsabilidade não
há culpa, onde não há culpa não há crime, onde não há crime não há vítimas, resume-nos
Arendt. E se não houver vítimas, as questões morais e éticas nem sequer se
colocam. Mas houve vítimas. Pessoas que foram torturadas por médicos em
experiência e pessoas que foram assassinadas por carrascos e vítimas-carrascos
que colaboraram entre si na prossecução do mal.
O holocausto nazi evidenciou duas
realidades que se julgavam impossíveis: a destruição da moral numa sociedade
organizada e a prática de crimes por homens vulgares. É neste contexto que
surge o conceito arendtiano da banalidade
do mal ou banal falta de pensamento, que não é congénita nem adquirida mas que
provém de uma ausência de mundo que empurra os homens para níveis próximos da
animalidade, incapazes de pensar a partir do ponto de vista do outro, incapazes de distinguir a
legalidade jurídica da legitimidade moral, incapazes de desobedecer face à crueldade.
Homens desprovidos de pensamento e imaginação, cuja leviandade abriu portas à
banalidade do mal. O povo alemão não era alienado da norma, era a própria norma,
pois viveu-se e morreu-se de acordo com o mal burocratizado para o qual bastou um
sistema hierarquizado e impessoal e competências normalizadas por procedimentos,
para se alastrar como se fosse uma praga incontrolável. A moral não é um valor
absoluto assente num imperativo categórico, antes pelo contrário, resulta de
algo que flui nos homens: o pensamento. Na ausência deste, o mal torna-se
possível, banal e incontrolável.
O pensamento é a faculdade que permite a
cada pessoa distinguir o bem do mal e o belo do feio. Sócrates descreve-o como um
conjunto de perguntas e respostas entre o eu
e si mesmo (a consciência), tão
rápido e silencioso que a sua estrutura dialógica é difícil de detectar, de
adulterar ou mesmo anular, apesar de ser possível adiar. Acontece sempre que
estamos fora do mundo, a sós connosco mesmos. Nesses momentos, a unidade eu cinde-se em dois eus e conversam de si para si. Quando deixamos de estar a sós, quando
o mundo exterior nos interrompe a solidão, voltamos a ser um perante os outros, mas
acrescentados com o juízo construído a partir do diálogo interior, que nos trouxe
um novo ponto de vista relativamente à circunstância envolvente. O pensamento
é, desta maneira, um diálogo antecipado com os outros. Qualquer pessoa privada de solidão ou de imaginação é
incapaz de ganhar consciência. Torna-se indistinto da norma, banal cumpridor de
regras, funcionário de qualquer coisa, que parte da regra geral para a aplicar
a todos os particulares, sem qualquer espírito crítico. Por insegurança, recusa
a pluralidade e a diferença tanto no outro
como em si mesmo. Limita-se a obedecer.
O pensamento é a condição necessária para
o exercício ético mas não é, por si só, condição suficiente para uma
ética-política, ou seja, para o pensamento e acção em conjunto. Para isso é
necessário tornar o pensamento, ou melhor, o juízo que dele resultou, visível através
da opinião. O juízo, pessoal e transmissível, que se constrói a partir de
eventos particulares, considerados sempre na sua contingência e sem preconceito,
tem a capacidade de estabelecer uma ligação entre a subjectividade individual e
a intersubjectividade da vida pública e social das comunidades políticas,
reconhecendo-lhes as diferenças. São eles que estão na base da construção da
opinião pública e de um sentido comum democrático. O juízo não admite, por
necessidade de pluralidade e de liberdade, a exclusão de partes do mundo, ou
seja, a exclusão dos outros.
A opinião comum encerra em si a capacidade
de rejeitar as verdades racionais (as verdades matemáticas, as verdades
científicas e as verdades filosóficas) e as mentiras intencionais, mas não as
evita. A facilidade com que a verdade de facto é interpretada como opinião ou
substituída por uma mentira intencional, é uma ameaça a ter em conta. No
primeiro caso, tal confusão desvaloriza a importância política quer da opinião
quer da verdade de facto, ambas fundamentais na prática democrática; quanto à
mentira intencional, se se tratar de um mentiroso privado que tenta a sua
sorte, não oferece perigo, mas a mentira organizada, como vimos, é uma arma
potente por conter em si uma intencionalidade não revelada. Se for confirmada
por maioria de opinião, é aceite como verdade de facto e ganha a força dos seus
apoiantes.
Falemos agora de outra lição não aprendida
pelos judeus. Após o holocausto, não obstante o genocídio, o horror sofrido e a
deslocação forçada, os judeus continuaram a pensar o mundo em termos totalitários.
Nas imagens históricas divulgadas por Ada Ushpiz no filme Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt (2015), podemos ouvir as
palavras proferidas no Congresso Sionista de 1944, quando foi reivindicado o
direito a um Estado judaico que deveria abranger toda a Palestina: «… essa
reparação será o Estado judeu uno, livre e democrático de Israel, ainda que
pouco signifique para os outros povos». Os palestinianos estavam excluídos da
solução, ainda que habitassem o território que lhes pertence por direito e
História. A divisão entre os judeus e os outros
ficou clara. Um antagonismo racista e chauvinista sobre aqueles que eram seus
vizinhos e que ficaram obrigados a duas opções: emigração voluntária ou
cidadania de segunda. Escolheram a terceira: a guerrilha. O mundo comum
desaparece sempre que se perde uma parte dele, ou seja, sempre que um povo ou
um vasto grupo de pessoas ou mesmo uma pessoa, são considerados supérfluos, ainda
que tenham sido co-constructores deste mundo que agora lhes recusa a
existência.
Vive-se hoje, na Europa, no Médio Oriente
e em África, o drama dos refugiados. Um mundo de gente fugida à fome e à
guerra, arrancada dos laços sociais e familiares, sem sentido de vida, sem discurso,
emagrecida, desabrigada, desamparada, desesperada, desnacionalizada, destituída
de direitos e de dignidade, esvaziada de identidade, tratada como supérflua por
um outro mundo dominado pela economia e pela estatística do comportamento que
não admite espaço para a diferença, obcecado pela segurança do status quo. A lição da História, cada um
toma-a como lhe convém. O racismo e a xenofobia já ganharam terreno, pois as soluções
totalitárias fazem-se sentir um pouco pela Europa, com o conveniente alerta de
que a dignidade humana se encontra ameaçada pela miséria social e económica,
dadas como irresolúveis. Se forem criadas situações-limite, a necessidade impor-se-á
à verdade, abrindo a oportunidade para os governantes justificarem a solução
que lhes é conveniente. A possibilidade de retorno ao passado paira no ar já
contaminado, e as suas consequências serão imprevisíveis, pois vivemos tempos
diferentes. Do lado de cá, a mesma sociedade de massas, escola do supérfluo, onde
a ausência de sentido é produzida diariamente, em permanente ode à indiferença,
intensificada pela realidade virtual que veio fragilizar a soberania dos
Estados e originar novos focos de poder. Do lado dos outros, a dor física da inumanidade, o castigo sem crime, a
expressão viva do «supérfluo». Uns e outros
cada vez mais incapazes de pensar. A banalidade do mal aguarda a sua
oportunidade.