quinta-feira, 12 de outubro de 2023

No mundo do Outro

 















«A humanidade é um enorme fardo para o Homem»

Hannah Arendt

 

 

Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados, uma em cada cento e treze pessoas em todo mundo é solicitante de refúgio, deslocada interna ou refugiada, forçada a sair da sua casa e do seu país, muitas das vezes deixando para trás a identidade que a distingue, o valor mais precioso do ser humano, outras das vezes perdendo a própria vida. Apesar do esforço investido na confiança e na igualdade pela «grande sociedade europeia», nascida dos destroços da Segunda Guerra Mundial, somos chegados, décadas depois, a uma sociedade estilhaçada pelo individualismo, normalizada pela indiferença, com a esfera pública e política destorcida pelo sprint das super-organizações de interesse privado, movidas por uma lógica do poder pelo poder, com a banalidade e a corrupção a ganharem um perigoso destaque. Nem os recém-deslocados nem os residentes poderão sentir o mundo como a sua casa, uma vez que a vizinhança em ambos não será reconhecida. Sessenta milhões de pessoas vindas de todo o lugar para lugar nenhum são a confirmação do fim do mundo comum. Cento e treze em cada cento e treze pessoas serão párias de si e párias da Humanidade. Como foi possível chegarmos aqui? Para compreender os fenómenos da banalidade e do mal, debrucemo-nos um pouco sobre o holocausto, a expressão extrema do mal no mundo, muito para lá das guerras, das perseguições ou das lutas pelo território, dirigido aos judeus, um povo que há mais de dois mil anos vive na condição de outro, sem nunca ter conseguido uma casa política.

Há pouco mais de cem anos, na velha e monárquica Viena vivia-se um mundo sem perturbações ou revoluções, depositava-se confiança no idealismo liberal e cumpria-se a ordem planificada pelo parlamento, eleito democraticamente. Um mundo confiante, vivido sem pressa. Nele, os judeus chegados dois séculos antes, encontraram o ambiente perfeito para as suas aspirações artísticas e rapidamente ascenderam ao lugar de guardiões da cultura vienense, deixada como herança pela Imperadora Maria Theresia. A assimilação social pelos círculos não-judaicos foi a forma de não sofrerem o preconceito anti-semita, emergente no século anterior. A elite judaica considerava-se, desta forma, cidadã de pleno direito. Trataram o anti-semitismo, que é uma questão política, como se fosse uma questão social. Ora, a igualdade social, marcadamente exclusiva, é diferente da igualdade política, necessariamente inclusiva, mas isso foi uma lição que não lhes chegou a tempo. O ilustre império da cultura e da arte foi convertido num posto avançado do regime nazi, a partir do qual o nacional-socialismo desagregaria a Europa inteira. A inexistência de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos e garantias ao judeu, em conjunto com a assimilação social, que ajudou a criar a ideia do judaísmo como um atributo inato, permitiu o extermínio do povo judaico durante o regime totalitário do III Reich, período em que a Alemanha se separou em duas: os alemães e os outros.  

Do outro lado dos outros encontrava-se Hitler, que teve, desde logo, a clara noção da importância da opinião pública, não somente para a conquista de votos (o regime nazi nasceu do voto do povo), mas também, e sobretudo, para a concretização do seu perverso objectivo: a prática de crimes contra a Humanidade. O nacional-socialismo utilizou a mentira organizada para cultivar o medo e justificar as medidas radicais e imorais sem qualquer possibilidade de debate, categoricamente eliminado da esfera pública e política. A consciência colectiva da necessidade de salvar o povo da miséria, da pobreza e do desemprego, com a certeza de se tratar de uma situação sem alternativa, foi a pedra angular para uma ideologia que se resumia ao seguinte: não há lugar para o outro (nem outras opiniões nem outros povos) porque o outro faz perigar a nossa vida. Por via de uma propaganda magistralmente organizada, a mentira foi tantas vezes dita que se tornou verdade, permitindo a Hitler arrastar multidões para o mundo ideológico nazi. O incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, e as prisões ilegais que se efectuaram nessa noite, bem como a Kristallnacht, em 9 e 10 de Novembro de 1938, com mais de 250 sinagogas queimadas, cerca de 7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus mortos, cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueados, foram meros actos de propaganda. Dali em diante, apenas se poderia esperar o pior.

A mentalidade alemã encontrava-se de tal maneira impregnada de ilusão e embuste que o extermínio de deficientes, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e judeus, seus vizinhos, amigos e familiares, todos cidadãos europeus, foi quase considerado normal. Aliás, normal e determinado por lei. Despojados do emprego, das casas, dos espaços sociais, das escolas e das universidades, do apelido, do nome próprio, das emoções e de todos os direitos, incluindo o direito à alimentação e à saúde, os judeus foram transformados em cadáveres vivos, indesejável escória social cuja imagem, largamente divulgada, confirmava a ideia de serem pedintes sem valor e escumalha perigosa para a qualidade de vida alemã. Inúteis e supérfluos, os judeus alemães e europeus, eram agora oficialmente os outros. Estavam a mais, não deveriam habitar o planeta. A sua erradicação de todos os territórios ocupados foi aplaudida por uma maioria ensandecida pela propaganda xenófoba, animada pelo culto à personalidade do Führer e orientada pela mão invisível da burocracia.

A Solução Final é, pela sua forma mais do que pelo número de mortos, o acontecimento mais brutal da História. Como foi possível, nos guetos e nos campos da morte, anular a compaixão e a piedade ou mesmo o sentimento de culpa em pessoas que não são homicidas ou sádicas por natureza? O truque é a autocomiseração, explica-nos a filósofa Hannah Arendt. Se estivermos mergulhados no nosso próprio sofrimento, torna-se difícil ver o sofrimento no outro, portanto, bastou inverter os instintos naturais de piedade e compaixão e dirigi-los para si mesmos: em vez de dizerem «fiz coisas horríveis a estas pessoas», dizem «tive de ver e fazer coisas horríveis, foi um fardo muito pesado que carreguei nos ombros». Quanto ao sentimento de culpa, que implica a consciência da culpa e o sentido de responsabilidade, foi anulado pelo facto de considerarem que estavam apenas a cumprir ordens: «tiveram de o fazer». Onde não há responsabilidade não há culpa, onde não há culpa não há crime, onde não há crime não há vítimas, resume-nos Arendt. E se não houver vítimas, as questões morais e éticas nem sequer se colocam. Mas houve vítimas. Pessoas que foram torturadas por médicos em experiência e pessoas que foram assassinadas por carrascos e vítimas-carrascos que colaboraram entre si na prossecução do mal.

O holocausto nazi evidenciou duas realidades que se julgavam impossíveis: a destruição da moral numa sociedade organizada e a prática de crimes por homens vulgares. É neste contexto que surge o conceito arendtiano da banalidade do mal ou banal falta de pensamento, que não é congénita nem adquirida mas que provém de uma ausência de mundo que empurra os homens para níveis próximos da animalidade, incapazes de pensar a partir do ponto de vista do outro, incapazes de distinguir a legalidade jurídica da legitimidade moral, incapazes de desobedecer face à crueldade. Homens desprovidos de pensamento e imaginação, cuja leviandade abriu portas à banalidade do mal. O povo alemão não era alienado da norma, era a própria norma, pois viveu-se e morreu-se de acordo com o mal burocratizado para o qual bastou um sistema hierarquizado e impessoal e competências normalizadas por procedimentos, para se alastrar como se fosse uma praga incontrolável. A moral não é um valor absoluto assente num imperativo categórico, antes pelo contrário, resulta de algo que flui nos homens: o pensamento. Na ausência deste, o mal torna-se possível, banal e incontrolável.

O pensamento é a faculdade que permite a cada pessoa distinguir o bem do mal e o belo do feio. Sócrates descreve-o como um conjunto de perguntas e respostas entre o eu e si mesmo (a consciência), tão rápido e silencioso que a sua estrutura dialógica é difícil de detectar, de adulterar ou mesmo anular, apesar de ser possível adiar. Acontece sempre que estamos fora do mundo, a sós connosco mesmos. Nesses momentos, a unidade eu cinde-se em dois eus e conversam de si para si. Quando deixamos de estar a sós, quando o mundo exterior nos interrompe a solidão, voltamos a ser um perante os outros, mas acrescentados com o juízo construído a partir do diálogo interior, que nos trouxe um novo ponto de vista relativamente à circunstância envolvente. O pensamento é, desta maneira, um diálogo antecipado com os outros. Qualquer pessoa privada de solidão ou de imaginação é incapaz de ganhar consciência. Torna-se indistinto da norma, banal cumpridor de regras, funcionário de qualquer coisa, que parte da regra geral para a aplicar a todos os particulares, sem qualquer espírito crítico. Por insegurança, recusa a pluralidade e a diferença tanto no outro como em si mesmo. Limita-se a obedecer.  

O pensamento é a condição necessária para o exercício ético mas não é, por si só, condição suficiente para uma ética-política, ou seja, para o pensamento e acção em conjunto. Para isso é necessário tornar o pensamento, ou melhor, o juízo que dele resultou, visível através da opinião. O juízo, pessoal e transmissível, que se constrói a partir de eventos particulares, considerados sempre na sua contingência e sem preconceito, tem a capacidade de estabelecer uma ligação entre a subjectividade individual e a intersubjectividade da vida pública e social das comunidades políticas, reconhecendo-lhes as diferenças. São eles que estão na base da construção da opinião pública e de um sentido comum democrático. O juízo não admite, por necessidade de pluralidade e de liberdade, a exclusão de partes do mundo, ou seja, a exclusão dos outros. 

A opinião comum encerra em si a capacidade de rejeitar as verdades racionais (as verdades matemáticas, as verdades científicas e as verdades filosóficas) e as mentiras intencionais, mas não as evita. A facilidade com que a verdade de facto é interpretada como opinião ou substituída por uma mentira intencional, é uma ameaça a ter em conta. No primeiro caso, tal confusão desvaloriza a importância política quer da opinião quer da verdade de facto, ambas fundamentais na prática democrática; quanto à mentira intencional, se se tratar de um mentiroso privado que tenta a sua sorte, não oferece perigo, mas a mentira organizada, como vimos, é uma arma potente por conter em si uma intencionalidade não revelada. Se for confirmada por maioria de opinião, é aceite como verdade de facto e ganha a força dos seus apoiantes.

Falemos agora de outra lição não aprendida pelos judeus. Após o holocausto, não obstante o genocídio, o horror sofrido e a deslocação forçada, os judeus continuaram a pensar o mundo em termos totalitários. Nas imagens históricas divulgadas por Ada Ushpiz no filme Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt (2015), podemos ouvir as palavras proferidas no Congresso Sionista de 1944, quando foi reivindicado o direito a um Estado judaico que deveria abranger toda a Palestina: «… essa reparação será o Estado judeu uno, livre e democrático de Israel, ainda que pouco signifique para os outros povos». Os palestinianos estavam excluídos da solução, ainda que habitassem o território que lhes pertence por direito e História. A divisão entre os judeus e os outros ficou clara. Um antagonismo racista e chauvinista sobre aqueles que eram seus vizinhos e que ficaram obrigados a duas opções: emigração voluntária ou cidadania de segunda. Escolheram a terceira: a guerrilha. O mundo comum desaparece sempre que se perde uma parte dele, ou seja, sempre que um povo ou um vasto grupo de pessoas ou mesmo uma pessoa, são considerados supérfluos, ainda que tenham sido co-constructores deste mundo que agora lhes recusa a existência.

Vive-se hoje, na Europa, no Médio Oriente e em África, o drama dos refugiados. Um mundo de gente fugida à fome e à guerra, arrancada dos laços sociais e familiares, sem sentido de vida, sem discurso, emagrecida, desabrigada, desamparada, desesperada, desnacionalizada, destituída de direitos e de dignidade, esvaziada de identidade, tratada como supérflua por um outro mundo dominado pela economia e pela estatística do comportamento que não admite espaço para a diferença, obcecado pela segurança do status quo. A lição da História, cada um toma-a como lhe convém. O racismo e a xenofobia já ganharam terreno, pois as soluções totalitárias fazem-se sentir um pouco pela Europa, com o conveniente alerta de que a dignidade humana se encontra ameaçada pela miséria social e económica, dadas como irresolúveis. Se forem criadas situações-limite, a necessidade impor-se-á à verdade, abrindo a oportunidade para os governantes justificarem a solução que lhes é conveniente. A possibilidade de retorno ao passado paira no ar já contaminado, e as suas consequências serão imprevisíveis, pois vivemos tempos diferentes. Do lado de cá, a mesma sociedade de massas, escola do supérfluo, onde a ausência de sentido é produzida diariamente, em permanente ode à indiferença, intensificada pela realidade virtual que veio fragilizar a soberania dos Estados e originar novos focos de poder. Do lado dos outros, a dor física da inumanidade, o castigo sem crime, a expressão viva do «supérfluo». Uns e outros cada vez mais incapazes de pensar. A banalidade do mal aguarda a sua oportunidade.

 

Fernanda Cunha

(texto publicado na revista  A Morte do Artista, #2, 2018)