quinta-feira, 26 de maio de 2022

«That's how the light gets in»

 












Habitamos a fenda onde se tocam todos os opostos e de onde nos vem o desejo e o ensejo de vivemos na urgência de dar corpo à alma, numa conformidade a fins sem fins, apenas porque sim. 

FC/26maio2022

quarta-feira, 18 de maio de 2022

"This Much I Know To Be True"

 














"This Much I Know To Be True" é um filme-documentário de Andrew Dominik sobre o processo criativo de Nick Cave & Warren Ellis, com músicas ao vivo dos álbuns “Ghosteen” (2019) e “Carnage” (2021) e uma participação especial de Marianne Faithfull. A extraordinária fotografia é de Robbie Ryan.
Como prelúdio, Nick apresenta-nos, à luz do dia e trajando uma bata branca de escultor, as 18 estatuetas do Diabo, criadas por si durante o confinamento Covid, que nos contam a vida do Diabo desde o nascimento até à morte. Uma vida banal, com o remorso a surgir mais adiante, e uma profunda e dolorosa paixão quando, no final, se ajoelha aos pés de uma criança, pedindo perdão. As restantes estatuetas parecem ser tão-somente o cumprimento de uma caminhada recta e solitária entre o nascimento e a morte, como ordenam os mandamentos.
Depois, entramos noite adentro, onde dorme o antiquíssimo do mundo, pela voz de Nick, central num salão despojado de tudo o que é supérfluo. Ali, apenas as três vozes do coro, os quatro violinistas, o baterista e Warren Ellis, essa extraordinária figura tribal e transcendente, o homem de todos os instrumentos, incluindo o do corpo e o do arrepiante grito da alma, em absoluta sintonia com Nick. Dois gigantes captados por duas câmaras numa pista circular, alcançando-se entre si e deixando ver um pouco dos bastidores da acção.
Somos tomados pelas canções-poesia ou canções-filosofia que se vão sucedendo em crescente catarse, como se fossem sempre a última; pela força do coro, dos violinos, do uivo de Warren e das luzes, que irrompem diante dos nossos olhos, gelando-nos o pensamento; e pelo movimento dos corpos de Nick e de Warren à medida que a música flui naquele espaço feito de sensibilidade, natureza e noite, obrigando-nos a olhar para o nosso próprio mundo interior e recusado.
Seria avassalador, não fosse a sequência das canções interrompida, aqui e ali, por pequenos excertos descontraídos que nos mostram pormenores da vida de Nick e de Warren, a atitude de Nick perante as mais de 30 mil mensagens que recebe no site The Red Hand Files e que o mantém racional, e a forma como lida com a desordem fértil de Warren e lhe reconhece generosidade artística e pessoal. Marianne Faithfull aparece envelhecida, sentada numa cadeira de rodas e ligada ao oxigénio, que retira para poder ler uma canção-falada de Nick. Desconcertante.
Nestes momentos, respiramos fundo e recuperamos do choque que é a descida às nossas próprias entranhas. Salva-nos a extraordinária beleza deste filme-catarse que, ao mesmo tempo que aprofunda os sentimentos mais obscuros que Nick coloca nas suas canções, também os alivia, permitindo-nos olhar de frente para tanto desespero, paixão e dor. «It's a long way to find peace of mind, peace of mind », canta-nos Nick.
«Todos vivemos as nossas vidas perigosamente, num risco constante, à beira da calamidade. Com o tempo, descobrimos que não temos o controlo de tudo. Nunca tivemos. Nunca teremos», diz-nos Nick. Precisamos reconhecer essa limitação e levar mais a sério a sensibilidade e a noite, onde se esconde o mito, o mistério anterior à história e às sagradas escrituras de onde nos surgem os ditames de Deus e do Diabo. Talvez assim, livres do desejo de uma felicidade catalogada, possamos encontrar o sentido das coisas e da vida. O cantor confessa, no final, querer libertar-se dos rótulos de músico e escritor, para ser apenas marido, pai, amigo e cidadão. Grande Nick, grande Warren, grande Andrew, grande Robbie. Enorme filme.

FC/maio2022

(2ª foto: Charlie Gray)

O amor e o tempo

 















O amor baralha o tempo. Estica-o, encolhe-o, paralisa-o, torce-o, destorce-o, distorce-o, determina-lhe os dias e as noites, pinta-lhe a manta, faz dele gato-sapato. O amor é do caneco. Não há opiáceo que lhe chegue aos pés.

fc/maio2022


sexta-feira, 13 de maio de 2022

«Será que existe uma estética da natureza?»

 


























O ciclo de conferências “Políticas da Estética: O Futuro do Sensível”, que decorre no CCB, apresentou hoje Catherine Larrère e a questão sobre a existência de uma estética da natureza. A oradora colocou-nos, no início da sua palestra, na segunda metade do século XIX e iniciou a viagem pela motivação estética da natureza em artistas franceses e americanos de então e pelo contributo da sua arte para a ideia de protecção da natureza, na altura olhada pelo prisma estético do sublime e do pitoresco, com apelo às emoções. A arte destacava a beleza da paisagem e isso impeliu-nos à sua protecção.

A palestra de Catherine Larrère continha várias questões: A que chamamos belo quando falamos da natureza? Necessitamos dos artistas para captar o belo da natureza? Não será esta visão artística da paisagem (uma natureza ao longe) uma mediação redutora e antropocêntrica, como afirmaram algumas das vozes ecologistas de então? Sobrevive a estética da natureza a um varrimento científico? Se suprimirmos a mediação artística, o que acontece à estética da natureza? 

Catherine citou Georges Sand: «Tout le monde a droit à la beauté et à la poésie de nos forêts» (1872). Georges Sand referia-se à floresta de Fontainebleau: «… qui est une de belles choses du monde, et la detruire serait, dans l’ordre moral, une spoliation, un attentat vraiment sauvage à ce droit de propriété intellectuelle qui fait de celui qui n’a rien que la vue des belles choses, l’égal, quelquefois supérieur de celui qui les possède». Um exemplo de emancipação social através da ecologia, mas isso são outros assuntos, regressemos ao Belo.

Aldo Leopold, um dos precursores da ética ambiental, veio à cena, trazendo consigo em simultâneo uma visão moral e ecológica sobre a natureza: «Une chose est juste lorsqu'elle tend à préserver l'intégrité, la stabilité et la beauté de la communauté biotique. Elle est injuste lorsqu'elle tend à l'inverse». Para Leopold, o olhar artístico dá à natureza uma beleza que não é a sua, ou seja, a natureza brilha com uma luz emprestada pelo artista plástico. Mais importante é a beleza autónoma da natureza, que Leopold afirma existir. Mas como chegar a ela?

Catherine apresentou-nos Ronald Hepburn, para quem estética e arte são sinónimos; Allen Carson, que defende que só é possível apreciar a beleza da natureza com conhecimento científico; Arnold Berleant, que trouxe a dimensão do sensível, a importância de mobiliar todos os sentidos e estar dentro da natureza, dentro da paisagem. Trouxe também Merleu-Ponty, Richard Long e Timothy Morton. Este último com a questão «Poderá haver uma ecologia sem natureza?». Mergulhámos na arte oriental e na neblina que esconde a montanha feita de arranha-céus, como se pode ver no quadro de Yang Yongliang.  Ali nada é natural, mas o quadro é de uma beleza impressionante. A não-natureza a ser igualmente bela. 

No final, pudemos ver alguns exemplos de Art/Land, um movimento artístico que utiliza matérias naturais, transformando-as em peças de arte, promovendo uma relação próxima com as coisas da natureza. Uma mediação artística que olha a natureza por dentro, com olhos de ver e sentir. 

O sublime, a veneração, a virilidade, o temor já não existem na natureza, temos de a olhar e ver de outra forma. Na vida comum há muita natureza e é preciso aprender a sentir essa natureza, disse-nos Catherine. A estética é uma forma de pensarmos e nos situarmos no mundo de forma diferente.  Mobilizarmos a imaginação que alimenta a arte tornou-se mais importante que nunca. Precisamos aproximarmo-nos da natureza e sermos um pouco como os povos indígenas que ainda sobrevivem e para quem a natureza não é objecto mas sim sujeito. A frase mais marcante de uma outra conferência em que participei, a 23.ª SBSTTA da Convenção sobre a Biodiversidade (Novembro de 2019, em Montreal), foi dita por uma representante do povo Inuit, do Ártico: 

«We respect the animals. We follow the animals, we follow the weather … we don’t try to control them», Utqiagvik Elder. 

Estarei novamente a afastar-me do tema? Não. Estética, arte e também natureza talvez sejam a mesma coisa. 

FC/12maio2022






terça-feira, 10 de maio de 2022

Catarina
















Pela terceira vez, no mais íntimo dos colos, em ninho feito de mar, um proto-coração embrionário convidou-me a amar. Aceitei. Eras tu. Entreguei-me aos teus sentidos e deixei-me ser, de novo, aprendiz de tal força da natureza. Foste paixão em modo rupestre, arte indelével em corpo prenhe, gente em construção, vontade inteira, novidade, revolução.

De mim partiste para a mim chegares, num 10 de Maio inicial, inteiro e limpo, lembrando a liberdade de Sophia. Chamei-te Catarina, o nome do meu ninho, feito de amor. Sem rede ou livro de instruções, fizemo-nos ao caminho. Passo a passo, mão na mão, abraço a abraço, falhando cada vez melhor. És agora todos os géneros literários, com luz própria, num mundo ainda por conquistar.   


FC/Maio2022

domingo, 1 de maio de 2022

No banco dos nus













Em 48 anos de democracia portuguesa, o mundo girou e o país girou com ele, mas nem por cá nem pelo mundo se conquistou a maturidade política. Continuamos serviçais de uma política de trazer por casa, baseada na resolução das necessidades de alguns (o dono da casa) e não no cumprimento das liberdades de todos. No banco dos nus continuamos, a taparmo-nos cada um com a sua firmeza ou com a ausência dela, a arrastarmo-nos pela esfera pública qual animal laborans, inaptos na palavra e na acção, mas eficientes no labor, ou seja, no metabolismo de sobrevivência. Indiferentes ao mundo, fomos facilmente manipulados e o trabalho perdeu todo o conceito que o dignificava. Viva o 1º de Maio!

Ao longo dos anos e à vista de todos, os objectos de uso, por princípio duráveis no tempo, passaram a ser vistos como bens de consumo vital, perecíveis e rapidamente consumidos. Como consequência, a instrumentalidade da fabricação transformou-se na intrumentalização ilimitada de tudo o que existe. Toca a produzir, consumir, devorar e deitar fora as nossas casas, as nossas roupas, móveis, telemóveis, carros, tudo. Trabalhemos na base do Efémero, construindo o Supérfluo, assim ordena o bicho. Viva o 1º de Maio!

Já vai longe a luta pelas oito horas e o grito pelo direito ao trabalho. Também as palavras foram instrumentalizadas. A única coisa levada em conta, e em boa conta, é o processo laboral de produção e consumo, o garante dos libidinosos oligocratas. Vamos lá fazendo festas e romarias e inventando necessidades, que eles (nós) nem se dão conta. Viva o 1º de Maio!

O circuito de abate está montado: primeiro foram os objectos de uso-consumo-e-deita-fora e depois a natureza, que se transforma e consome até à exaustão, sem tempo para recuperação. Calha bem porque nos vazios haverá mais espaço para depositarmos a matéria mais imperecível que soubemos inventar: o lixo. Produzimo-lo com as nossas próprias mãos, durante as nossas horas de trabalho e de descanso, a troco da nossa própria vida e da nossa morte. Assim deve ser, para que a máquina continue a engordar. Não sabem eles que na natureza nunca haverá vazios. Viva o 1º de Maio!

Os homens são os terceiros a entrar neste circuito debulhador. Também nós, afundados no nosso individualismo de sofá, já olhamos para os outros (nós) como supérfluos e não hesitamos em deitá-los ao sofrimento e à morte. Viva o 1° de Maio!

FC/1maio2022