domingo, 1 de junho de 2025

Cuerpo, Alma e Raíz … … ou a "rístina ânsia dionisíaca"
















Sentir

O compasso que vem das margens do tempo,

Dos pueblos que choram, em silêncio.

Demanda de corações antigos –

árabes, judíos, gitanos, andaluces.

 

Sentir

taconeo firme na terra molhada,

Sobre el dolor, la rabia, el miedo e la muerte.

Cuerpo de sangre em cante jondo,

Pase de pecho, dança total.


Sentir

 ¡Sí! ¡Somos!

De corpo inteiro, de sangre entera! ¡Somos!

Na vida sacra e na sombra da morte! ¡Somos!

Em contraluz e em contratiempo! ¡Somos!

¡Olé!

 


À Rocío, Margarida, Teresa e todas as Azules, pela oportunidade do espírito flamenco –

uma dança crua, visceral e ancestral, com raízes que atravessam línguas, terras e dores.

 


sexta-feira, 28 de março de 2025

Os Sentimentos

 












O Sublime foi o tema da sétima de dez sessões do ciclo de conferências dedicado aos Sentimentos, ou à maneira como cada um de nós tem acesso à vida, aos outros e a nós próprios, através da batuta de António de Castro Caeiro, nas sempre diferentes salas do CCB. Um roteiro sobre a subjectividade, o lado que nos vem do futuro como promessa, sem pretensão à verdade mas que, na verdade, é o que de mais objectivo temos no acesso ao mundo que nos desafia através do érōs e da controvérsia. António Damásio foi chamado a dizer que tudo o que nos contraria deixa lastro e que a consciência distendida do sentimento de si não admite nenhuma força de bloqueio, nem a morte. Agrada-me esta liberdade, que será o tema seguinte, no mês da revolução.

Ao longo dos últimos meses, António de Castro Caeiro foi dando ao conceito, espantando-nos com o movimento de resistência ao adormecimento que nos oferece a filosofia. Trouxe, como prova, a voz de outros filósofos. E como a filosofia e a literatura se tocam, trouxe também escritores. Jorge Luís Borges acredita que a literatura e a filosofia surgem do espanto perante o real. Se a permanência é onde somos, o tempo matará o espanto?, pareceu-me ouvir, ou perguntei eu, de mim para mim, enquanto o mestre prosseguia. Talvez não, porque cada instante tem a possibilidade dupla do nascimento e da morte, ouvi-o dizer. Por isso, e também porque cada experiência depende da forma como cada um habita o espaço e o tempo, não posso tomar como universal a verdade de Sartre, para quem o viver é sempre um perder.

Os gregos entraram-nos sentimentos adentro e ficou-nos o desejo de querer saber mais, nós que temos a mania de querer tudo. E se o prazer for mau?, questiona Sócrates, no desejo de chegar à questão seguinte. Ovídio não responde a Sócrates, mas indica-nos caminhos para a resposta, nas suas obras. Se somos no tempo, como defende Heiddegger, então o sentido da vida tem a lógica da antecipação, do desejo. Com o futuro a deliberar. E com espaço para a decepção, já agora. O desejo é imposto pelo exterior, precisa do corpo para se converter em conteúdo mundano e tem uma lógica de insaciedade ­ – ou adicção – se não houver compreensão, vai-nos dizendo Caeiro. A lógica do desejo termina com o prazer, que só será bom se for compreendido. Ser servidor do desejo é redutor, pois somos mais do que a nossa comichão, diria Sócrates.

Ira, fúria, cólera, raiva … sim, somos atmosféricos e temos um campo de forças para lá das fronteiras do nosso corpo, sobretudo se estamos irados. Somos reactivos, como Aquiles ou Hamlet. Sobre a ira, sabemos que é um desejo acompanhado de dor e que a partir dela não se constitui qualquer sentido ou controle sobre o outro. Mas porque somos animais com capacidade para o sentido, quando caímos em nós, damo-nos conta que caímos fora de nós – (ekstasis).

Nietzsche teve a palavra, Aristóteles também, mas é São Paulo quem vem em nosso socorro: «o amor não se ira facilmente». Sempre suspeitei do poder do amor. Na ausência do amor, talvez a nostalgia se imponha. Aprendi que não é um termo grego, mas é composto por dois termos gregos: nóstos + álgos (regresso a casa + dor). Na sua finitude, os gregos são nostálgicos, para eles o passado está adiante e o futuro lá atrás. E para nós? 

Ouvimos Rilke, Kant, Hölderlin e Bernardo Soares («Sim, outrora eu era daqui…»), mas foi Novalis quem me encantou, com a definição de filosofia. Diz ele que «a filosofia é a saudade de casa, um impulso para estar em casa em toda a parte». Caeiro lembra-nos que a forma inaugural, a tal casa, acontece apenas uma vez. A presença do passado, tal e qual ele é, não existe, pois o futuro repete-se, incapaz de nos devolver o passado. O futuro é o objecto da nostalgia. Mas, acrescenta o mestre, em cada instante poderá constituir-se a possibilidade nostálgica do momento, que é, pasme-se, a possibilidade de princípio, ou seja, aquilo que procuramos.

E surge a melancolia, um fenómeno da existência medido, segundo os gregos, pelo peso dos quatro humores – sangue, bilis amarela, bilis negra e fleuma – que variam ao longo do ano e com a idade. Tal tristeza traz-nos a questão: porquê? Talvez Platão e a sua excentricidade nos possam ajudar. Ouvimos. Mas e a tristeza, esse esvaziamento de sentido, essa desocupação, essa retenção do tempo? «Ah, isso! O relógio da vida parou agora mesmo», diz-nos Rimbau... 

A melancolia é simultaneamente som e fúria e vazio. Parece-nos ser um fardo, se nada fizermos para o evitar. Caeiro refere algumas tentativas, como a interrupção (horário organizado em horas e dias úteis e inúteis) ou a fuga para diante, como acontece hoje em dia com a euforia e a embriaguez desmesurada. A oração é a solução das ordens religiosas para o vazio e a monotonia. Belo truque. Talvez a criatividade nos possa ajudar. Ou a filosofia, pois a possibilidade do tempo é a possibilidade da filosofia. Cada sentimento traz consigo uma chave para a resolução, um sentido, acalmou-nos o professor, dando-nos esperança.

A ideia de que o contrário do esvaziamento do tempo é o seu preenchimento agrada-me. Talvez possa responder à tristeza com a alegria perante o sublime das pequenas coisas. Uma reflexão sobre o sublime impõe-se em tempo de crise.

Para o sublime, Caeiro convidou Longin, Homero, Kant, Aristófanes, Rilke, Viggo Borg e Philip Roth. O sublime acontece no instante em que vemos algo que nunca havíamos visto, que nos provoca perplexidade, causa espanto, nos assombra e nos deixa imobilizados. Surge como se fosse uma revelação. Kant, por exemplo, põe-nos em contacto com a natureza de carácter extraordinário, como os oceanos, os ciclones, as montanhas, não no que são mas como nos aparecem. Mas mais interessante é o alerta que nos faz relativamente à diferença entre o Belo e o Sublime. O primeiro está circunscrito às fronteiras de um dado objecto, seja da natureza ou artístico. O segundo não está aprisionado a nenhum objecto, não tem forma, é imensurável, transcendente, angustiante e extasiante. Provoca uma inibição de forças. A mente é, alternadamente atraída e repelida, sentimo-nos envolvidos, contaminados por qualquer coisa que excede os dados materiais. «Sente-se uma ansia de ir até ao infinito», afirma Kant. Não se trata de um objeto dos sentidos, mas de uma cadência, uma vibração da alma, diz-nos Caeiro.

Schiller também procurou compreender como o sublime afeta as emoções e a razão humana. Para si, sublime não é apenas uma questão de grandiosidade ou beleza, é também uma experiência de elevação moral e espiritual, que nos conecta com algo maior do que nós mesmos. O sublime liberta enquanto o belo nos aprisiona. Subitamente e não gradualmente. 

Longin entende o sublime como grandeza do pensamento: «Nem mesmo o universo inteiro é suficiente para o alcance do pensamento humano». Já para Rilke, o sublime está nas pequenas coisas que para o comum dos mortais é banal, mas para o poeta não. O poeta vive como um desconhecido no vão da sua própria casa. O poeta coincide com cada um de nós. Para Philip Roth, no céu estrelado vê-se o vasto cérebro do tempo, dando o mote ao professor, que termina a sessão com a afirmação de que as estrelas são indispensáveis.

Fico à espera da liberdade, do amor e da esperança, com a certeza do espanto.  

(fc/28março2025)

Escuela de Baile Rocio Columé.

 















De Andaluzia para o mundo, eis a Escuela de Baile Rocio Columé. Estoy encantada! Olé!

O flamenco é uma dança que não deixa margem para dúvida. Forte na expressão, vai buscar às culturas árabe, judaica, cigana e andaluza, a angústia, a tristeza, o medo, a alegria, a coragem, o arrojo e a determinação das gentes que foram resistindo - e ainda hoje resistem em diferentes partes do mundo - às perseguições e às fúrias de outros povos com sede de exclusão e morte. É, como a maior parte da expressão artística, uma forma de resistência.
Esta paixão andaluza afirma-se pelas palmas, pelo violão, por outros instrumentos que se acrescentem, às vezes por orquestras inteiras, por cantares quase primitivos (no sentido da proximidade à emoção pura), pelo sapateado que se impõe e pela firme graciosidade do bailar, sempre em desafio e com uma desarmante beleza. O flamenco é uma dança de corpo inteiro. Olé!
(fc/março/2025)

domingo, 5 de novembro de 2023

Gaza

 
















Tanto em Gaza como noutros lugares do planeta onde a guerra persiste por mão dos mais poderosos, racionalmente alimentados pela macro-economia das armas e dos recursos não renováveis (petróleo, diamantes, lítio, etc) e irracionalmente alimentados pela necessidade (des)humana do poder sobre o outro, levado à prática através da chacina dos mais fracos, daqueles que por razão ética ou por limitação económica, não se armaram até aos dentes, mas que, por má sorte, nasceram em lugares-alvo de mentes criminosas em corpos cobardes, gente que, por circunstâncias nem sempre claras, são chefes de países (eis o lugar perfeito para o serial killer), fisicamente protegidos por guarda-costas e politicamente apoiados por fantoches guarda-ódios, isto é, por uma comunicação social prostituída e por uma sociedade massivamente alienada que vê a guerra pela televisão como se de futebol se tratasse, gritando furiosamente vivas às mortes roubadas.
A história do mundo é uma história de guerras, ódios e valas comuns onde se amontoam corpos que não tiveram terra nem oração, não tiveram tempo para arrefecer. Quando nos roubam a vida, roubam-nos também a morte. Roubam-nos o tempo necessário para seguir em frente, para renascer a partir da vida que se perde. Tanto para a pessoa que perdeu o seu ente querido, como para a população vítima da guerra, como para o mundo no seu todo. Estamos perante crimes contra a humanidade à qual todos pertencemos. Cada um de nós é alvo desta e de todas as outras guerras. Tenhamos isso presente.
As mortes roubadas são hiatos no tempo. Todas somadas, podem vir a atingir uma dimensão tal, que se torne inultrapassável a lacuna entre o passado e o futuro da própria humanidade. Perdido estará o fio condutor. A bem de todos nós, importa não autorizar que alguém nos roube esse tempo, importa condenar em absoluto a guerra, seja ela qual for, seja ela onde for, seja ela por que motivo for. Na Palestina, na Ucrânia, na Síria, no Yemen ... fuck the war!
(fc/novembro2023)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

No mundo do Outro

 















«A humanidade é um enorme fardo para o Homem»

Hannah Arendt

 

 

Segundo os dados da Agência da ONU para Refugiados, uma em cada cento e treze pessoas em todo mundo é solicitante de refúgio, deslocada interna ou refugiada, forçada a sair da sua casa e do seu país, muitas das vezes deixando para trás a identidade que a distingue, o valor mais precioso do ser humano, outras das vezes perdendo a própria vida. Apesar do esforço investido na confiança e na igualdade pela «grande sociedade europeia», nascida dos destroços da Segunda Guerra Mundial, somos chegados, décadas depois, a uma sociedade estilhaçada pelo individualismo, normalizada pela indiferença, com a esfera pública e política destorcida pelo sprint das super-organizações de interesse privado, movidas por uma lógica do poder pelo poder, com a banalidade e a corrupção a ganharem um perigoso destaque. Nem os recém-deslocados nem os residentes poderão sentir o mundo como a sua casa, uma vez que a vizinhança em ambos não será reconhecida. Sessenta milhões de pessoas vindas de todo o lugar para lugar nenhum são a confirmação do fim do mundo comum. Cento e treze em cada cento e treze pessoas serão párias de si e párias da Humanidade. Como foi possível chegarmos aqui? Para compreender os fenómenos da banalidade e do mal, debrucemo-nos um pouco sobre o holocausto, a expressão extrema do mal no mundo, muito para lá das guerras, das perseguições ou das lutas pelo território, dirigido aos judeus, um povo que há mais de dois mil anos vive na condição de outro, sem nunca ter conseguido uma casa política.

Há pouco mais de cem anos, na velha e monárquica Viena vivia-se um mundo sem perturbações ou revoluções, depositava-se confiança no idealismo liberal e cumpria-se a ordem planificada pelo parlamento, eleito democraticamente. Um mundo confiante, vivido sem pressa. Nele, os judeus chegados dois séculos antes, encontraram o ambiente perfeito para as suas aspirações artísticas e rapidamente ascenderam ao lugar de guardiões da cultura vienense, deixada como herança pela Imperadora Maria Theresia. A assimilação social pelos círculos não-judaicos foi a forma de não sofrerem o preconceito anti-semita, emergente no século anterior. A elite judaica considerava-se, desta forma, cidadã de pleno direito. Trataram o anti-semitismo, que é uma questão política, como se fosse uma questão social. Ora, a igualdade social, marcadamente exclusiva, é diferente da igualdade política, necessariamente inclusiva, mas isso foi uma lição que não lhes chegou a tempo. O ilustre império da cultura e da arte foi convertido num posto avançado do regime nazi, a partir do qual o nacional-socialismo desagregaria a Europa inteira. A inexistência de uma igualdade jurídica que garantisse os direitos e garantias ao judeu, em conjunto com a assimilação social, que ajudou a criar a ideia do judaísmo como um atributo inato, permitiu o extermínio do povo judaico durante o regime totalitário do III Reich, período em que a Alemanha se separou em duas: os alemães e os outros.  

Do outro lado dos outros encontrava-se Hitler, que teve, desde logo, a clara noção da importância da opinião pública, não somente para a conquista de votos (o regime nazi nasceu do voto do povo), mas também, e sobretudo, para a concretização do seu perverso objectivo: a prática de crimes contra a Humanidade. O nacional-socialismo utilizou a mentira organizada para cultivar o medo e justificar as medidas radicais e imorais sem qualquer possibilidade de debate, categoricamente eliminado da esfera pública e política. A consciência colectiva da necessidade de salvar o povo da miséria, da pobreza e do desemprego, com a certeza de se tratar de uma situação sem alternativa, foi a pedra angular para uma ideologia que se resumia ao seguinte: não há lugar para o outro (nem outras opiniões nem outros povos) porque o outro faz perigar a nossa vida. Por via de uma propaganda magistralmente organizada, a mentira foi tantas vezes dita que se tornou verdade, permitindo a Hitler arrastar multidões para o mundo ideológico nazi. O incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, e as prisões ilegais que se efectuaram nessa noite, bem como a Kristallnacht, em 9 e 10 de Novembro de 1938, com mais de 250 sinagogas queimadas, cerca de 7.000 estabelecimentos comerciais judaicos destruídos, dezenas de judeus mortos, cemitérios, hospitais, escolas e casas judias saqueados, foram meros actos de propaganda. Dali em diante, apenas se poderia esperar o pior.

A mentalidade alemã encontrava-se de tal maneira impregnada de ilusão e embuste que o extermínio de deficientes, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e judeus, seus vizinhos, amigos e familiares, todos cidadãos europeus, foi quase considerado normal. Aliás, normal e determinado por lei. Despojados do emprego, das casas, dos espaços sociais, das escolas e das universidades, do apelido, do nome próprio, das emoções e de todos os direitos, incluindo o direito à alimentação e à saúde, os judeus foram transformados em cadáveres vivos, indesejável escória social cuja imagem, largamente divulgada, confirmava a ideia de serem pedintes sem valor e escumalha perigosa para a qualidade de vida alemã. Inúteis e supérfluos, os judeus alemães e europeus, eram agora oficialmente os outros. Estavam a mais, não deveriam habitar o planeta. A sua erradicação de todos os territórios ocupados foi aplaudida por uma maioria ensandecida pela propaganda xenófoba, animada pelo culto à personalidade do Führer e orientada pela mão invisível da burocracia.

A Solução Final é, pela sua forma mais do que pelo número de mortos, o acontecimento mais brutal da História. Como foi possível, nos guetos e nos campos da morte, anular a compaixão e a piedade ou mesmo o sentimento de culpa em pessoas que não são homicidas ou sádicas por natureza? O truque é a autocomiseração, explica-nos a filósofa Hannah Arendt. Se estivermos mergulhados no nosso próprio sofrimento, torna-se difícil ver o sofrimento no outro, portanto, bastou inverter os instintos naturais de piedade e compaixão e dirigi-los para si mesmos: em vez de dizerem «fiz coisas horríveis a estas pessoas», dizem «tive de ver e fazer coisas horríveis, foi um fardo muito pesado que carreguei nos ombros». Quanto ao sentimento de culpa, que implica a consciência da culpa e o sentido de responsabilidade, foi anulado pelo facto de considerarem que estavam apenas a cumprir ordens: «tiveram de o fazer». Onde não há responsabilidade não há culpa, onde não há culpa não há crime, onde não há crime não há vítimas, resume-nos Arendt. E se não houver vítimas, as questões morais e éticas nem sequer se colocam. Mas houve vítimas. Pessoas que foram torturadas por médicos em experiência e pessoas que foram assassinadas por carrascos e vítimas-carrascos que colaboraram entre si na prossecução do mal.

O holocausto nazi evidenciou duas realidades que se julgavam impossíveis: a destruição da moral numa sociedade organizada e a prática de crimes por homens vulgares. É neste contexto que surge o conceito arendtiano da banalidade do mal ou banal falta de pensamento, que não é congénita nem adquirida mas que provém de uma ausência de mundo que empurra os homens para níveis próximos da animalidade, incapazes de pensar a partir do ponto de vista do outro, incapazes de distinguir a legalidade jurídica da legitimidade moral, incapazes de desobedecer face à crueldade. Homens desprovidos de pensamento e imaginação, cuja leviandade abriu portas à banalidade do mal. O povo alemão não era alienado da norma, era a própria norma, pois viveu-se e morreu-se de acordo com o mal burocratizado para o qual bastou um sistema hierarquizado e impessoal e competências normalizadas por procedimentos, para se alastrar como se fosse uma praga incontrolável. A moral não é um valor absoluto assente num imperativo categórico, antes pelo contrário, resulta de algo que flui nos homens: o pensamento. Na ausência deste, o mal torna-se possível, banal e incontrolável.

O pensamento é a faculdade que permite a cada pessoa distinguir o bem do mal e o belo do feio. Sócrates descreve-o como um conjunto de perguntas e respostas entre o eu e si mesmo (a consciência), tão rápido e silencioso que a sua estrutura dialógica é difícil de detectar, de adulterar ou mesmo anular, apesar de ser possível adiar. Acontece sempre que estamos fora do mundo, a sós connosco mesmos. Nesses momentos, a unidade eu cinde-se em dois eus e conversam de si para si. Quando deixamos de estar a sós, quando o mundo exterior nos interrompe a solidão, voltamos a ser um perante os outros, mas acrescentados com o juízo construído a partir do diálogo interior, que nos trouxe um novo ponto de vista relativamente à circunstância envolvente. O pensamento é, desta maneira, um diálogo antecipado com os outros. Qualquer pessoa privada de solidão ou de imaginação é incapaz de ganhar consciência. Torna-se indistinto da norma, banal cumpridor de regras, funcionário de qualquer coisa, que parte da regra geral para a aplicar a todos os particulares, sem qualquer espírito crítico. Por insegurança, recusa a pluralidade e a diferença tanto no outro como em si mesmo. Limita-se a obedecer.  

O pensamento é a condição necessária para o exercício ético mas não é, por si só, condição suficiente para uma ética-política, ou seja, para o pensamento e acção em conjunto. Para isso é necessário tornar o pensamento, ou melhor, o juízo que dele resultou, visível através da opinião. O juízo, pessoal e transmissível, que se constrói a partir de eventos particulares, considerados sempre na sua contingência e sem preconceito, tem a capacidade de estabelecer uma ligação entre a subjectividade individual e a intersubjectividade da vida pública e social das comunidades políticas, reconhecendo-lhes as diferenças. São eles que estão na base da construção da opinião pública e de um sentido comum democrático. O juízo não admite, por necessidade de pluralidade e de liberdade, a exclusão de partes do mundo, ou seja, a exclusão dos outros. 

A opinião comum encerra em si a capacidade de rejeitar as verdades racionais (as verdades matemáticas, as verdades científicas e as verdades filosóficas) e as mentiras intencionais, mas não as evita. A facilidade com que a verdade de facto é interpretada como opinião ou substituída por uma mentira intencional, é uma ameaça a ter em conta. No primeiro caso, tal confusão desvaloriza a importância política quer da opinião quer da verdade de facto, ambas fundamentais na prática democrática; quanto à mentira intencional, se se tratar de um mentiroso privado que tenta a sua sorte, não oferece perigo, mas a mentira organizada, como vimos, é uma arma potente por conter em si uma intencionalidade não revelada. Se for confirmada por maioria de opinião, é aceite como verdade de facto e ganha a força dos seus apoiantes.

Falemos agora de outra lição não aprendida pelos judeus. Após o holocausto, não obstante o genocídio, o horror sofrido e a deslocação forçada, os judeus continuaram a pensar o mundo em termos totalitários. Nas imagens históricas divulgadas por Ada Ushpiz no filme Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt (2015), podemos ouvir as palavras proferidas no Congresso Sionista de 1944, quando foi reivindicado o direito a um Estado judaico que deveria abranger toda a Palestina: «… essa reparação será o Estado judeu uno, livre e democrático de Israel, ainda que pouco signifique para os outros povos». Os palestinianos estavam excluídos da solução, ainda que habitassem o território que lhes pertence por direito e História. A divisão entre os judeus e os outros ficou clara. Um antagonismo racista e chauvinista sobre aqueles que eram seus vizinhos e que ficaram obrigados a duas opções: emigração voluntária ou cidadania de segunda. Escolheram a terceira: a guerrilha. O mundo comum desaparece sempre que se perde uma parte dele, ou seja, sempre que um povo ou um vasto grupo de pessoas ou mesmo uma pessoa, são considerados supérfluos, ainda que tenham sido co-constructores deste mundo que agora lhes recusa a existência.

Vive-se hoje, na Europa, no Médio Oriente e em África, o drama dos refugiados. Um mundo de gente fugida à fome e à guerra, arrancada dos laços sociais e familiares, sem sentido de vida, sem discurso, emagrecida, desabrigada, desamparada, desesperada, desnacionalizada, destituída de direitos e de dignidade, esvaziada de identidade, tratada como supérflua por um outro mundo dominado pela economia e pela estatística do comportamento que não admite espaço para a diferença, obcecado pela segurança do status quo. A lição da História, cada um toma-a como lhe convém. O racismo e a xenofobia já ganharam terreno, pois as soluções totalitárias fazem-se sentir um pouco pela Europa, com o conveniente alerta de que a dignidade humana se encontra ameaçada pela miséria social e económica, dadas como irresolúveis. Se forem criadas situações-limite, a necessidade impor-se-á à verdade, abrindo a oportunidade para os governantes justificarem a solução que lhes é conveniente. A possibilidade de retorno ao passado paira no ar já contaminado, e as suas consequências serão imprevisíveis, pois vivemos tempos diferentes. Do lado de cá, a mesma sociedade de massas, escola do supérfluo, onde a ausência de sentido é produzida diariamente, em permanente ode à indiferença, intensificada pela realidade virtual que veio fragilizar a soberania dos Estados e originar novos focos de poder. Do lado dos outros, a dor física da inumanidade, o castigo sem crime, a expressão viva do «supérfluo». Uns e outros cada vez mais incapazes de pensar. A banalidade do mal aguarda a sua oportunidade.

 

Fernanda Cunha

(texto publicado na revista  A Morte do Artista, #2, 2018)

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Sobre o filme «A Grande Beleza», de Paolo Sorrentino (2013)

 































Já me tinha dado conta da fragilidade da coisa mundana, agravada até ao grotesco na elite cultural italiana (mas não só a italiana), tão bem representada pela estética perturbante de Paolo Sorrentino em «A Grande Beleza», ou reduzida à expressão mínima, paternalista e de bairro, como as fábricas de candelabros de tampões, as camisas-de-vénus para cacilheiros ou os falos esculpidos por aqui e por ali, na esfera mendicante portuguesa (mas não só a portuguesa), com tudo o que de mundano existe por entremeio. O jornalista Jep Gambardella (protagonizado por Toni Servillo) diz-nos, no início do filme, que aos 26 anos ambicionava ser o rei dos mundanos. Acompanhamo-lo agora, aos 65 anos, existindo no sobrenadante da elite artística romana e concluindo sobre a verdade, a beleza, o afecto e a generosidade do sentido de humor.
O conceito de beleza remete-nos para a arte. Falta-me lastro para perceber o que é arte e o que não é. Estou a dar os primeiros passos. Pressinto que a arte é um acto de fé, como tudo o que importa nesta vida. E, também como tudo o que importa na vida, igualmente maltratada. Paolo Sorrentino mostra-nos isso, precisamente. De como a malta prefere alimentar-se do blá blá blá de meia-tigela e da linha branca, em alternativa à sopa quente e à paixão; de como gosta de apresentar-se vestida de colagem e recolagem, decotes, lantejoulas e pele esticada a custos mil, nas festas alimentadas ao som do bum bum bum alienatório, substituto grosseiro das batidas do coração mas nada impeditivo do arrazoado diálogo de narcisos (talvez por ser coisa de surdos); ou de como se entrega ao infrutífero sexo casual, com o entusiasmo letárgico dos moribundos. Isso e o resto, feito de protocolo mandatório e jaculatória hipocrisia, sem esquecer a violência que recai sobre a criança que pinta (sobre o artista), aqui usada como animal de circo. Show off desta infeliz humanidade off, qual cultura de pacote, esse caldo moderno a contrariar o caldo primitivo do planeta, onde a vida se desenvolveu.
O plástico traz uma beleza bruta às cenas do filme, atirando-nos com a verdade aos olhos: o plástico é lixo. Se olharmos em volta, por toda a parte veremos plástico sem arte. O desaparecimento do belo é um indicador preocupante da perda do mundo. Mas então, onde está a grande beleza? Certamente no oposto. No silêncio, na simplicidade, na natureza, na naturalidade, no sentir, no espanto, no medo, na alegria, no sublime, nas epifanias, na autoridade (de autoria), na autenticidade … ou, como me disse um amigo, no afecto, o sinónimo de mimo, ternura, carinho, apego, afago, afeição, atenção, vínculo, desvelo e cuidado. Permitam-me que traga Saramago à prelecção: «enquanto as vamos nós aqui saboreando [às palavras] vão eles [aqueles que (as) vivem] fazendo o que elas dizem, não é nada connosco, nós só sabemos de palavras».
A arte, uma das expressões do belo, parte dos gestos íntimos e apaixonados do artista para chegar ao outro, ao público, em forma de amor, não sendo nunca estéril. Se o for, estamos perante uma masturbação que satisfaz apenas uma necessidade e que nada acrescenta de belo porque não há partilha. Jep Gambardella imaginava o mar no tecto do seu quarto, mas nada mais que isso. A sua amiga não conseguiu ver o mar no tecto, porque vivia aquém disso. A vida masturbatória do escritor impediu-o de publicar livros durante 40 anos. Na sua vida apenas havia publicado um. O desejo de ser o mais mundano de todos os mundanos fê-lo esquecer que a arte, a boa arte, é a mais suprema das coisas mundanas, a que traz significado, profundidade e valor estético às coisas do mundo. Pois então que comece o romance, esse truque da imaginação, «no fundo é apenas um truque, sim, só um truque», disse-nos Jep Gambardella, no final do filme.

Post scriptum: Tenho receio que a humanidade venha a perder a alegria, o nosso mais concreto truque.

(fc/junho2023)



quinta-feira, 2 de março de 2023

«Os Irmãos de Leila», do cineasta iraniano Saeed Roustayi

 









O realizador iraniano Saeed Roustayi coloca-nos na sala, no quarto, na casa-de-banho, na cozinha, no corredor, nas escadas e no terraço da casa onde mora uma família disfuncional: o pai Esmail, falido, desvalido e viciado em ópio; a mãe, mulher conformada e obediente à desvirtude do marido; a filha Leila, que mantém a família, influencia os irmãos e desafia o pai; o filho Alireza, desempregado e pouco corajoso; o filho Parviz, que ganha a vida a limpar casas-de-banho, a comer e a fazer filhos; o filho Manouchehr, envolvido em esquemas fraudulentos de enriquecimento rápido; e o filho mais novo, Farhad, musculado e alheado da realidade social. 

A intimidade desta família toca-nos a pele e a realidade da ficção entra-nos corpo adentro, sem pedir licença. Encolhemo-nos na cadeira quando o velho Esmail se apequena, agigantando-se no ecrã; quando, sempre dobrado, se humilha ou humilha, não se respeitando a si nem respeitando os outros, que são os seus filhos; ou quando recebe o aplauso da família, no momento em que se senta na cadeira do patriarca; ou quando grita, fuma, come, urina ou defeca; ou quando leva uma bofetada da filha. Humores corporais, humores errantes, humores fracturantes, humor negro, que saltam da tela e nos atingem assim, a cru. Tudo serve para trazer à «sofreh» o tema que percorre todo o filme: a dignidade.  

A história passa-se em Teerão, onde vivem 12 milhões de habitantes, uma cidade como muitas outras do mundo: desigual. Os pobres da zona Sul nunca chegarão a ricos da zona Norte e as mulheres pobres da zona Sul nunca chegarão a ser gente nem a Sul nem a Norte. Talvez uma herança da guerra, dos embargos internacionais e do retorno à ideologia islâmica, ou melhor, certamente, uma herança da condição humana globalmente alienada, que afasta os homens da humanidade e os empurra para a animalidade.

A família de Esmail vive na zona Sul, aglomera-se por ali, na urbanização decadente, nos hospitais públicos e nas filas para o subsídio de desemprego. Leila e Parviz trabalham no centro comercial na zona Norte. Leila acredita existir a possibilidade de a sua família escapar à pobreza através da compra de uma loja, onde todos os irmãos possam trabalhar em modo próprio. Uma oportunidade que nasce da futura transformação de uma casa-de-banho em três lojas, mesmo ali, no centro comercial onde trabalha. Nenhum dos irmãos de Leila, nem a própria, têm dinheiro para a compra da loja, precisam das 40 moedas de ouro que pertencem ao pai, mas o pai precisa delas para ocupar, com honra, o lugar de patriarca-mor da família, como mandam os costumes e também o filho do patriarca anterior. Entre a honra do pai e uma vida mais condigna dos filhos, a família vê-se dividida e confrontada consigo mesma, envolvendo-se numa sucessão de conflitos e confusões, sem que se vislumbre um final feliz.

Leila é o soldado desta batalha pela dignidade, fá-lo em nome da família, numa cultura onde a mulher tem de se sujeitar ao homem e uma filha ao pai, não importando quão desprezível ele possa ser; ou quão irracional possa ser (é) a líbido do poder sobre os outros; ou quão insustentável é a fluidez do mercado financeiro, bastando um tweet de um presidente, na outra ponta do mundo, para alterar o valor do ouro que se tem em mãos e tramar quem confia nas regras do jogo. No final, sobra o desconsolo e a impotência, servidas juntamente com a comida, como de costume, na «sofreh», a toalha tradicional iraniana que se estende no chão e em torno da qual todos se sentam, na hora das refeições.

Saeed Poursamimi e Taraneh Alidoosti estão extraordinários nos papéis de Esmail e de Leila, mas os restantes actores do elenco não lhes ficam atrás: Navid Mohammadzadeh, Payman Maadi, Farhad Aslani, Mohammad Almohammadi, Navereh Farahani e Mehdi Hoseininia.  A excelente fotografia, sob a responsabilidade de Hooman Behmanesh, é parte importante no sucesso do filme.  

FC/março2023