sexta-feira, 3 de julho de 2015

A «ortonormia» do Eu



















Há certos dias da semana em que os meus eus se evadem de mim e se referenciam nos eixos do x, do y e do z , formados pelos dois espelhos do Ginásio. Fico sem defesas, frente a frente com o meu ego, de esguelha com o meu alter-ego, e numa proximidade estranha e simétrica com o meu terceiro eu. Todos eles seguem os meus movimentos de forma precisa, mas não sei se sou eu que os comando ou se sou apenas o resultado de um jogo matemático em referencial ortonormado. 

No outro dia, o ego piscou-me o olho antes de autorizar o eu mais de esguelha a mover-se livremente ao som da música, coisa que ele é perdidinho por fazer. Quando isso acontece, o alter-ego toma o comando e todos os meus eus se entregam à música mais do que ao consciente e racional movimento aeróbico que se pratica no ginásio. Eu acho que o ego gosta, por isso pisca o olho. Na verdade, não há eu em mim que não goste. Mas a aula não é de dança e rapidamente regressamos ao trabalho muscular. Os músculos agonistas e antagonistas combinam sinergias, os sinergistas e os fixadores estabilizam articulações e músculos e os tensores eliminam a tensão. O corpo redesenha-se ao som do nonagésimo segundo CD do Body-Pump. Um novo eu?

Eu olho de soslaio para o Professor e acompanho-o no movimento. Não sei para onde olha o meu terceiro eu, mas também acompanha o movimento, em simetria negativa. Acho que foi o terceiro eu o responsável pela lesão nos isquiotibiais. Estava a olhar para ele quando fiz a espargata. Poderá a fragmentação das fibras musculares significar uma fragmentação do eu? Em certa medida.

As simetrias são desafios interessantes porque quando me oriento por outro eu, o do Professor reflectido no espelho, não é imediato o lado que devo mexer. O reflexo das simetrias baralha-nos os lados direitos e esquerdos. Fica claro que ali não é o lugar da política e, no entanto, com a palavra surgindo aqui e ali nos intervalos da música, os corpos em uníssono e as vozes em contratempo, somos invadidos pelo sentimento de comunhão. Todos diferentes, todos iguais.

Afinal, talvez haja um pouco de política, comprovada pela felicidade colectiva que ali se partilha quando olhamos uns para os outros no reflexo dos espelhos (os eus e os alter-eus incluídos - o terceiro eu é uma exclusividade minha). O grande culpado é o Professor que não tem problemas em enfrentar o grande Aquiles. Tenho para mim que vai ganhar a batalha.      

Uma última nota: a palavra «ortonormia» não existe, são liberdades de um corpo suado que a tudo se atreve.



FC/2julho2015

A nona













Cavaco Silva publicou um novo livro? Sobre política?! Mas o que poderá o senhor professor Silva ensinar-nos? Formado e deformado em Economia e Finanças, Cavaco olha para a política através do crivo da economia, reduzindo-a a fórmulas e teorias decapantes da liberdade e da pluralidade, os pilares da verdadeira política e do sentido público. Toda a sua actuação reduziu-se a colocar a política (o interesse de todos) ao serviço da economia (o interesse de alguns), e promover leis (o garante da equidade) ao serviço da necessidade (de terceiros). A antítese da liberdade, portanto. Esta lição eu não aceito.

Cavaco foi jovem e fez-se adulto ao mesmo tempo que a Europa se reconstruia do efeito da segunda grande guerra. Teve direito a uma profissão por si escolhida, a uma carreira, a casar e a ter filhos. Foi professor de Economia, ministro das finanças, primeiro-ministro e presidente da República. Encontrou o seu lugar no país, teve justo pagamento, foi respeitado. Certamente desde o primeiro dia. Um esforço recompensado. Tudo graças à herança dos velhos europeus que, cansados da miséria e da guerra, inventaram o Estado Social, aplicaram o Plano Marshall, criaram a ONU, a NATO, o FMI e o Banco Mundial, estruturas supranacionais que visavam a paz e a igualdade, os sustentáculos da democracia. Cavaco deveria saber reconhecer isso, nascido em Boliqueime, filho de um comerciante de frutos secos e de combustíveis e de uma mulher simplesmente Maria.

Hoje, vivemos o Portugal de Cavaco. A sua pegada tem o comprimento de 30 anos, demasiado comprida para poder desresponsabilizar-se do estado da arte. A assinatura está lá: C A V A C O. Neste Portugal de compromissos esquecidos, os velhos voltaram a trabalhar, os adultos vêem-se desempregados e os jovens não têm lugar. Se porventura encontram um princípio de vida, permanecem eternamente em estágio, negando-se-lhes todos os direitos. Brilhante estratégia da chamada economia de mercado, dirão uns quantos!!! Que adultos virão a ser estes jovens? Mão-de-obra barata, gritará Cavaco, orgulhoso da sua obra. What else? 

A escola pública está em perigo, os hospitais públicos em decadência, as empresas estruturais vendidas ao terceiro mundo... suga-se o povo, sangra-se o país... lêem-se epígrafes nazis em livros de medicina (!)... perspectivam-se as balas e, mais tarde, a vala comum. A Europa desmorona-se e Portugal toma a dianteira. O que poderá o Presidente Cavaco ensinar-nos na sua novena? Nada. Remeta-se ao silêncio, por favor, nós encontraremos o nosso caminho.   

FC/março2015

Para aonde vão as moscas no Inverno?
















O exemplo deve vir de cima, mas ninguém nos avisou que seria das moscas.

É certo que as moscas, bichos de notável adaptabilidade, dominam o nosso espaço aéreo mais privado, conspurcam o nosso alimento, desafiam a nossa luz, desfocam-nos o alvo, reproduzem-se sem licença, fazem-nos cócegas e no fim, apenas no fim, atrevem-se a amolecer à nossa frente. Descaradas! É mais que certo que tratam da sua vidinha não olhando ao resto (e que olhos elas têm!). Iguais entre si, iguaizinhas, voltam sempre que o tempo aquece. Ano após ano, sempre as mesmas moscas. Pelo menos, assim parece.

E se parece, é! (pois é de política que falamos).

As moscas carregam os bacilos da ignorância nas patas, no corpo, nas asas e na tromba mole. Proboscis ameaçador, se visto à lupa. Mas falta-nos essa lente. Bichinhos inocentes, pensamos. Enganamo-nos. As moscas não dormem. Enviam emails pela madrugada adentro, trabalham em surdina. Metem-se em aviões e fazem negócios da china. Urdem planos, conspiram, usurpam, vigiam-se, atraiçoam-se. Comprometem o futuro. Pudera! O seu ciclo de vida é estupidamente curto! A única preocupação centra-se no seu próprio umbigo. 

Moscas com umbigo, coisa bizarra. 

E a bizarria, sabemos nós, é própria dos humanos. A despropósito, como irá o Acordo Ortográfico, nesta ideia de juntar línguas, resolver significados diferentes para a mesma palavra? Bizarro: bem-apessoado, alto e belo, ou Bizarro: extravagante, excêntrico e esquisito? Neste caso, aplicam-se ambos. Mais uma prova de que os políticos-mosca estão em concordância com os tempos modernos. 

Os entendidos chamam-lhe co-evolução.

Também poderíamos chamar-lhe Revolução, Devolução, Evolução, Involução ou Denegação. Mas a questão não interessa às moscas, o seu cérebro está mais ocupado com a fuga rápida a qualquer ameaça.

Não há cidades para as moscas porque são incapazes de sair da ordem doméstica, falta-lhes mundo. Prisioneiras da necessidade e da urgência, mostram-se inábeis para a organização política. E o que parece, é! 
Imperfeita cidadania? Próprio das moscas. 

O povo que se cuide.

FC/04março2015

quinta-feira, 2 de julho de 2015

"O osso da borboleta", de Rui Cardoso Martins





















O osso da borboleta, Rui Cardoso Martins, Tinta da China, 2014



A beleza é o tema principal do mais recente livro de Rui Cardoso Martins, O osso da borboleta. O autor parte da beleza como atributo feminino para chegar à beleza como atributo da humanidade, percorrendo um desconcertante caminho literário que não nos deixa indiferentes.

Num mundo pleno de fealdade, a beleza da personagem principal, a Purificação, tanto como a beleza da ex-companheira de Paulo, uma personagem que aparece de relance, está inevitavelmente associada a um jogo mais de azar do que de sorte, reflectido na imoral relação presa-predador (a moralidade não mora na natureza das coisas), quase sempre convidando a uma fornicação que morde porque tem dentes como os da lampreia. E quem não morde é mordido. São as leis da natureza (e a moralidade, já se disse, não mora na natureza das coisas). Vai-se a beleza, por inevitável envelhecimento ou por estranha fuga, e a vida inflecte sobre o passado. Para os náufragos de sofá e de sótão, “nada é tão imprevisível como o passado”. Um passado que se faz presente e lhes troca os tempos.

Num arrojamento ficcional despudorado, onde o passional é apenas interrompido (ou talvez fortalecido) por considerações sobre as coisas do mundo, por qualquer (des)propósito sempre reflectidas num ecossistema de sótão, Rui Cardoso Martins empurra-nos, sem nos dar fôlego, para uma outra dimensão da beleza, a beleza pública, revelada no final do último capítulo, nas últimas linhas do romance. Um simples gesto, talvez o mais simples de todos os gestos humanos, encerra o romance. O cumprimento da essência humana através desse simples gesto desarma-nos e faz-nos ganhar o mundo. Sairemos vivos desta fábula política porque, também aqui, a beleza foi servida fria.


Fernanda Cunha/janeiro2015

Sono de Inverno, um filme político





















Título Original: Kis uykusu
De: Nuri Bilge Ceylan
Com: Haluk Bilginer, Melisa Sözen, Demet Akbag
Drama, cor, 196 min, idioma turco, 2014
Estúdio: NBC Film, Bredok Filmproduction, Memento Films Production, Zeynofilm
Distinguido com a Palma de Ouro no 67.º Festival de Cannes



Sono de Inverno, o filme de Nuri Bilge Ceylan, ouve-se, vê-se, cheira-se, apalpa-se, saboreia-se. Os cinco sentidos estimulados. Três horas e quase meia, no compasso da sonata para piano de Schubert. O tempo real desaparece dos nossos sensores e mergulhamos inteiros nas vidas das personagens. Truque da fotografia, astúcia do som, inteligência dos diálogos. 

Em cena, os desencontros entre marido e mulher, irmão e irmã, senhorio e inquilino, na liberdade, na literacia, na fé e no amor. Anti-heróis das suas próprias vidas, encapsuladas no tempo e no isolamento, as personagens reflectem uma Turquia extrema, igual, afinal de contas, a tantos outros lugares. 

Tal como acontece nas sonatas, onde a ausência do canto nos liberta, também aqui a ausência de um pré-conceito do autor em relação aos temas que nos oferece, concede-nos a liberdade de juízo sobre a nossa própria condição humana. Sublime!

fc/janeiro2015

O sucesso da “deslinguagem”





















A propósito de uma certa degradação da linguagem e da cultura, comentada com muita pertinência por Mário De Carvalho, por ocasião da entrega do Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2013, acrescento-lhe um “ponto”. Há umas semanas atrás, dirigi uma carta, cuidadosamente escrita, à directora de uma certa entidade pública. A carta, merecedora de todos os meus cuidados, reflectia sobre a arte, levada à prática pela entidade em causa, e apelava à justa consideração de um caso particular. A resposta, pouco ponderada por urgente e estranha necessidade de encerrar o caso levantado, chegou dois dias depois, em formato ofício. Nos poucos parágrafos, descuidados e intencionalmente falseados, lia-se a ordem de fim de estágio, vinda “de cima”. O certificado do estagiário, repentinamente eliminado, foi emitido dias mais tarde. Continha uma informação mínima, mais que mínima, redigida num só parágrafo (como é costume nestes modelos), mas sem as vírgulas obrigatórias e sem a qualidade que o timbre do próprio certificado merece.

O sucesso da deslinguagem (neologismo que se impõe) e a sua correspondente limitação (ou desonestidade) intelectual, são crescentes nas actuais esferas política e social. A nulidade de conteúdo, de que enfermam estes fenómenos, esconde uma perigosa e eficaz discricionariedade, um perigoso e perverso poder. Sem mesura nem lisura, é fácil, muito fácil, ficarmos reduzidos (alguns nem isso) à “liberdade de pátio”, título do segundo conto do livro de Mário de Carvalho, cuja capa vem bastante a propósito. 



FC/março2014

Garvão e Santa Luzia ao mundo












Muito obrigada pela oportunidade destas palavras que pretendo partilhar convosco, no dia em que se extinguem as duas assembleias de freguesia, Garvão e Santa Luzia, e se dá posse à nova Assembleia da União de Freguesias de Garvão e Santa Luzia.

Portugal é um país pequeno mas de grandes assimetrias geográficas, que resultaram em assimetrias sociais e económicas entre o norte, o sul, o litoral e o interior e que, até hoje, não soubemos anular. Apesar destas assimetrias, a organização administrativa portuguesa foi desenhada no sentido de igualar a participação política de norte a sul, contrariando o que, ao longo dos tempos, foram os poderes sobre o território, detidos pelos senhores feudais, pelas ordens religiosas e militares, numa época mais distante, ou controlados pela ditadura fascista numa época mais recente. Das antigas Províncias de Salazar, inspiradas nas Comarcas Reais e que caracterizavam o Portugal rural de então, progrediu-se para os Distritos, que eram unidades de controlo administrativo e político do Estado. Com a conquista da democracia em 1974, o poder local, através das câmaras municipais e das freguesias, é o garante da condição de igualdade política, portanto, um dos pilares da democracia.

Pela proximidade com o eleitorado, as assembleias de freguesia são, por excelência, o órgão mais democrático de todo o sistema político português, pois resultam directamente do voto do povo, com quem partilham o mesmo território, a mesma identidade, o mesmo sentido de lugar. As freguesias são, na verdade, a unidade do nosso sistema democrático.

Neste sentido, há quatro anos atrás, quando assumi as funções de presidente da Assembleia de Freguesia de Garvão, para mim eram claras as atribuições políticas das assembleias de freguesia. É meu entendimento que os seus objectivos foram cumpridos com zelo, assiduidade, pontualidade e respeito pelo direito à palavra, quer ao nível dos membros que a compunham quer ao nível da intervenção do público. Por esse motivo, é importante referir aqui o nome dos seus membros: Maria de Fátima Nobre Vilhena, Nuno Daniel dos Santos Simões, Susana Maria Alexandre, Dulce Silva Guerreiro, Reinaldo Pereira Soares, João Brás Adanjo e, quase no final, Ezequiel Guerreiro Cunha, em regime de substituição de um dos membros. E saudar a participação de todos os cidadãos que nela participaram.

Vivemos tempos estranhos, muito estranhos. Perante a grave situação económica e financeira que Portugal enfrentou nos últimos anos a resposta dos nossos políticos profissionais passa apenas pela via económica, esquecendo-se que os Estados não são propriamente empresas mas sim organizações políticas, que, no nosso caso, é também democrática. Contrariando a essência da democracia, os nossos governantes inverteram a fórmula: a economia deixou de estar ao serviço das pessoas para serem as pessoas a estar ao serviço da economia. O Estado Social passou a ser visto como uma despesa e o país está violentamente acorrentado à vontade exterior, à vontade dos mercados e da «troika». Portugal caminha perigosamente para o vazio político, cujo primeiro passo foi a extinção de parte das freguesias, o segundo passo será a reforma do Estado, e o terceiro poderá ser a própria Constituição da República (esse bicho mau).  

É neste contexto de vazio político, que é fácil anular as pessoas. O valor da escola, da saúde e do trabalho está a ser anulado. Os jovens emigram, os adultos desesperam e os idosos, ultimamente o suporte financeiro das suas famílias, são agora o alvo. Os idosos são vistos simplesmente como um obstáculo à economia, apelidados «peste grisalha» por um responsável político, sem que tenha havido consequências dessa ofensa.  
A questão das oito horas é significativa. Duas palavras num pequeno papel, que resumem a resistência à adversidade e a firmeza de gerações inteiras do século XX português, e que o povo alentejano tão bem conhece. Duas palavras que significam agora a preguiça portuguesa. Oito horas agora transformadas em 40 horas semanais/mínimo, significando não maior produtividade (porque não vem acompanhada de outras medidas) mas sim o encolhimento da esfera pública e esfera privada. A saber: o direito à família, ao lazer e aos amigos. O direito a viver e a pensar.

A mentira entrou na cena política. Não a mentira eleitoral, pois essa pende sobre o futuro e serve simplesmente para seduzir o eleitorado. Faz parte do jogo político de sedução. Falo na mentira sobre o presente, a realidade. Essa mentira faz lembrar a propaganda fascista, sempre preocupada em mostrar um país limpo, de gente obediente, pobre mas feliz. A mentira tem apenas uma intenção: branquear a realidade, anular as reacções.  

Portugal corre o risco de perder expressão política perante os seus parceiros. Já é evidente em relação à Europa, começa agora a ser uma evidência clara em relação a Angola, virá certamente, a sê-lo em relação à China e a todos os países que vierem a deter algum poder sobre os nossos serviços estruturais. Portugal e os portugueses não contaram para a discussão. O que pretendem, afinal, estes senhores? 

As assembleias locais são praticamente o único reduto do espaço político ao alcance da participação efectiva das populações. São, por isso, importantes focos de coesão das pessoas e, por consequência, da coesão nacional. A alteração da dimensão territorial das freguesias poderá ser a possibilidade de incluir, a este nível, temas transversais ao território português. Façamos da extinção das freguesias uma oportunidade. As novas assembleias, representantes do poder local, neste momento talvez os únicos verdadeiramente representantes do povo, deverão acender o rastilho que conduzirá àdinamite política capaz de inverter o caminho da autodestruição de Portugal e dos portugueses.

Lembrando as palavras fortes de Saramago: «Da terra não se levantam só as espigas, levantam-se também os homens».

As maiores felicidades à nova assembleia. Há muito trabalho pela frente, não se afoguem na burocracia. Representem o povo.

Muito obrigada,


Fernanda Cunha, presidente cessante da Assembleia de Freguesia de Garvão, 2009-23013

Oito horas











Oito horas.
Duas palavras num pequeno papel, que resumem a resistência à adversidade e a firmeza de gerações inteiras do século XX português. Um pequeno papel passado de mão em mão, às escondidas, até à vitória dos cravos.
Oito horas…
Que foram também de tortura, de fome, de desespero, de solidão. No banco dos nus, “tapa-te lá com esta força e esta firmeza”, diz o escritor. No final, papel em branco, nenhum nome. A dignidade foi superior à dor e ao medo. Os presos políticos lembrar-se-ão.
Oito horas?
Donos e senhores de marionetes políticas determinam o fim das oito horas. Em nome do interesse público, clamam. - De sol a sol, que esta vida é de trabalho! De “arrastamento”, insiste o escritor.
Oito horas,
Entre reuniões autofágicas, emails apressados, motoristas atarefados, gravatas sufocantes, ordens, ordens, ordens… eles trabalham para lá das oito horas. Sentem-se formigas num mundo de cigarras preguiçosas. Porém, a montanha é incapaz de parir um rato. As pessoas não interessam, quando o tempo corre contra o tempo. Cumpra-se! (é mais rápido assim). É pena desperdiçar-se um dia inteiro nesta treta das eleições, pá. -pensarão alguns - Façamos o frete, pois segunda-feira o comando é nosso, novamente. E já nas 40 horas!
Oito horas!
A hora de abertura das urnas, no dia 29. O papel é nosso. É pessoal, intransmissível e livre. Uma cruz a significar democracia. Neste dia, e apenas neste dia, o desempregado é igual ao empregado, o rico é igual ao pobre, o candidato é igual ao eleitor, o primeiro-ministro é igual ao indigente.
É importante deixar clara a força desta igualdade. É importante demonstrar a força do Poder Local, a força do poder de um povo. Desta vez, mais do que nas outras, talvez, é importante pensar global, agir local. É importante votar!
FC/25set2013

(véspera das eleições autárquicas 2013)

Pouca terra, nenhuma terra… entre cidades










Alentejo. Muita terra, muita terra.  Planícies que autorizam a expressão “Que grande é o mundo!” e serras que cortam a monotonia dos sobreiros e restolhos. Entre cidades encontramos presépios de cal branca que escondem as singularidades e as potencialidades das gentes e dos lugares.
Lugares fora do alcance das grandes cidades até aos finais do século XIX, por ausência das vias de comunicação. O reconhecimento da sua importância para o país, recém-saído de uma depressão económica herdada das invasões francesas e da guerra civil, foi a razão política que fez Fontes Pereira de Mello avançar com o projecto de construção de uma rede ferroviária e rodoviária, num esforço significativo para modernizar Portugal. Mesmo perante a grave depressão financeira da década 1890, o projecto ferroviário não parou.
A rede ferroviária pretendia chegar à fronteira com Espanha, na ambição de restituir a Lisboa o atributo de porto internacional para o comércio espanhol, e alcançar todas as povoações importantes do país.  As principais cidades do interior alentejano estiveram incluídas, desde logo, nos primeiros projectos ferroviários, em 1884. Beja e Évora ficariam ligadas ao grande pólo industrial do Barreiro, com acesso fluvial a Lisboa.   
Os carris de ferro foram avançando lentamente por entre terras e vales, mergulhando por serras e colinas e saltando sobre rios, graças ao crédito externo. Acreditava-se que o investimento económico compensaria a despesa. As estradas cresceram em conjunto com a linha férrea.  
Pouca terra, pouca terraO comboio aproximou terras. Impulsionou a agricultura e a indústria local, como aconteceu em Garvão (Linha do Sado) e provocou explosões demográficas em locais inesperados, por vezes no meio do nada, como aconteceu na Funcheira (Linha do Sado/Linha do Sul). Os serviços descentralizados da CP favoreceram a fixação de trabalhadores nas terras por onde parava o comboio.
O transporte rápido e fácil das mercadorias revolucionou a sociedade rural portuguesa. Os produtos da terra eram, até então, vendidos localmente ou comercializados nas feiras da região. Longe da possibilidade de escoar mercadoria, não havia vantagem em aumentar a produção. Com a chegada do comboio, as distâncias encolheram e a economia local ganhou a oportunidade de participar numa rede comercial maior.
A possibilidade de escoamento dos produtos agrícolas fez aumentar a produção. Os anteriores baldios e descampados, onde a comunidade podia colocar o gado a pastar ou recolher lenha, foram divididos e atribuídos aos particulares, para exploração. A superfície cultivada aumentou. O rendimento das pequenas propriedades tornou possível o acesso a melhores condições de vida e à escolaridade. A classe média surge no interior rural e as pequenas cidades progridem.  A componente burocrática, típica das cidades grandes, trouxe consigo a criação de postos assalariados de trabalho.
Nos anos 60 do séc. XX, a industrialização destrona a produção agrícola. O investimento político foi dirigido para uma indústria baseada em baixos salários, o que implicava a manutenção artificial do custo de vida e, portanto,  a fixação de preços baixos nos produtos agrícolas. Os desequilíbrios regionais provocados pela industrialização, protegida pelo Estado em detrimento da produção agrícola, tornaram-se publicamente preocupantes, porém, abafados pela ditadura salazarista. Novo êxodo do campo para a cidade. Através do comboio.  
Pouca terra, nenhuma terra. Novembro de 2011. O Governo desactiva os serviços regionais onde considera haver baixa procura: linhas de Vendas Novas, Alentejo (no troço Beja-Funcheira), Leste, Oeste, Vouga e troço Caldas da Rainha-Figueira da Foz. O transporte de mercadorias mantém-se e a mobilidade das pessoas será assegurada por concessões rodoviárias ainda por estabelecer.
O endividamento de 16.700 milhões de euros da REFER é a justificação para as medidas impostas e o Plano Estratégico dos Transportes é a resposta ao compromisso assumido com a Troika, no qual se impunha a revisão da dimensão da rede ferroviária, racionalizando-a de acordo com a verdadeira vocação do caminho-de-ferro, de modo a aumentar a sustentabilidade financeira deste sector.
Para o Governo, a verdadeira vocação do comboio parece excluir a mobilidade regional, encontrando no transporte sub-urbano e no transporte inter-regional de grandes distâncias a competitividade e a sustentibilidade que ambiciona.
A redução de cerca de 40% das linhas regionais relativamente ao auge da sua actividade, em 1944,  reduz drasticamente o serviço público de Mobilidade Regional. Cerca de 1.600km de linha ficarão indisponíveis aos passageiros do interior do País. No caso de Beja, a capital de distrito do Alentejo, a medida corta a ligação ferroviária desta cidade com o Algarve, destino profissional de muitos alentejanos.
Sem a electrificação da linha, oportunidade perdida no passado, o troço Funcheira-Beja ficou à margem da modernização, apenas autorizando a circulação da velha automotora a diesel, lenta e dispendiosa. Os horário disponíveis não permitiam uma ida e volta a Beja, com tempo útil para tratar assuntos ou trabalhar. A sempre previsível reduzida procura deste serviço justifica agora o encerramento da linha. 
E se a visão fosse outra? Uma aposta nas linhas regionais de modo a assegurar uma mobilidade efectiva e eficaz que permitisse às populações rurais, à semelhança do que acontece nos meios urbanos, a utilização do comboio como uma verdadeira alternativa ao transporte rodoviário, mais moroso e poluente? No caso do troço Funcheira-Beja, os 62 km de linha e de serviço permitiriam o acesso das populações de Odemira, Ourique, Castro Verde, Almodovar e Aljustrel ao emprego em Beja. E vice-versa.     
Não há alternativa, diz o Governo. Uma austeridade que nos é imposta sem se entender exactamente qual foi, no âmbito político, o erro de partida, ou qual é, no âmbito político, o ponto de chegada. Uma austeridade financeira, apolítica, órfã de um plano económico, cega e sem garantia de sucesso. O plano proposto poderá não ser suficiente, assim assume o Governo ao acrescentar que ainda em 2012 será reanalisada a necessidade de implementação de outras medidas de racionalização de oferta, de modo a atingir o equilíbrio operacional do sector ferroviário. Equilíbrio zero?
Sem o comboio, a dupla cicatriz de ferro na paisagem  assinalará o abandono das zonas rurais. Da muita terra se fez pouca. Da pouca terra se fará nenhuma. Entre cidades restarão apenas solidões e descampado.
FC/Dez2011
(Artigo publicado no Jornal Costa a Costa de 16 de Dezembro de 2011)  

O país, a ilha e os lugares





















1.
Em cena a mais recente adaptação do clássico Moby Dik, muito aplaudida pelos grandes da praça mundial. Chama-se Moody’s Dick e conta a história da pequena jangada chamada Portugal. A história inicia-se com o cumprimento da profecia de Saramago em A Jangada de pedra, para depois seguir o enredo dramático de Herman Melville, o autor de Moby Dik.
A jangada Portugal, tal como o navio Pequod em Moby Dik, distancia-se do seu porto seguro (?), a velha Europa, e faz-se ao mar, por um período de três anos, com um objectivo - a caça à baleia. Esta actividade, em que somos especialistas, visa ganhar o dinheiro suficiente para podermos atracar novamente à Europa. As gorduras e o espermacete das baleias rendem o dinheiro necessário para reconstruir os alicerces da autofágica Europa, esclerosada pela ganância da velha Alemanha.  
Mas lá longe, depois de todo o oceano, está Moody’s Dick, gigante besta, de cor indeterminada, imoral e quase criminosa, que não esperou muito tempo para abanar a sua cauda e provocar uma espécie de tsunami sobre a pequena e fragilizada jangada. Espalhou o espermacete e inundou o convés de Portugal. Afogados no líquido da baleia, os tripulantes da jangada afogam-se, asfixiam-se, falta-lhes o ar. A Moody’s Dick, terror dos mares e das terras, especialmente as mediterrânicas, apareceu para matar.
Os velhos alicerces da Europa abanam. Portugal é puxado pelas correntes do desastre. Mesmo em direcção à boca gigante de Moody’s Dick, que anseia por lixo. LIXO, LIXO, LIXO. Moody’s Dick pretende engolir Portugal inteirinho e ficar a arrotar electricidade e água em privado.
Cumprida a profecia de Saramago, o autor português, cumprir-se-á a de Melville, o autor americano? Sobreviverão os portugueses à Moody’s americana?
2.
Não é conto de fadas, conto de encantamento, fábula ou lenda esta história que vos quero contar. É tão-somente uma dúvida que me invade sobre uma mala fechada de uma espécie de rei que indo nu, traja ricamente. 
O que terá a mala do Rei? Peúgas reais? Pois se ele traja ricamente… Tesouros imperiais do pequeno Arquipélago? Os medos do povo? As fragilidades de outros? O quê? O que terá a mala que ele escondeu com mil cuidados e que agora ostenta como se de um ceptro se tratasse. Em legítima defesa, segundo diz.
Uma mala e um rei. Que não se confunda com aquele outro rei, D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal, de quem Eça de Queiroz falou, nas Farpas de Fevereiro de 1872. A inseparável mala do Príncipe Imperante de Eça acompanhava o dono sempre que este saía do Brasil. A mala era uma insígnia, um substituto do ceptro, um sinal de democracia, que trazia consigo quando se deslocava ao continente europeu. “Não me confundam com Ele, a Sua Majestade. Tratem-me por Pedro.”, dizia.  Perante o cerimonial europeu na recepção de tão elevada figura, D. Pedro empunhava a mala e, se necessário fosse, mostraria as chinelas de mouro. A mala significava que trazia na mão não o ceptro mas a sua própria bagagem, tal como todos os homens simples. Era um homem para o povo, um bom homem. A pequena mala estava vazia. Sua Majestade não a usava como bagagem, punha-a como disfarce, um símbolo. Não mais que isso. Ficou a lenda.
Agora o rei fanfarrão. Outra mala, outro rei. Que traz ele na mala? Não é uma mala vazia, o símbolo da simplicidade de D. Pedro. É, antes, uma mala com o Vazio. O Vazio colossal com que brindou todo o povo português. Um vazio incontinente que chega a todos. Este rei dos Atlânticos veste-se como Carmen Miranda para dançar com o povo e gosta de ostentar o charuto cubano quando discursa boçalidade. O rei vai nu mas traja ricamente. Da mala agora aberta não ficará a lenda.
3.
Iniciaram-se as Olimpíadas Verdes, uma competição entre lugares nunca vista anteriormente em Portugal. A competição olímpica decorre até 2012 e a corrida promete ser renhida. Serve para entreter os agitados mercados e, simultaneamente, organizar o território português. As regras do jogo foram publicadas no Documento Verde, nome assim atribuído pelo seu autor Relvas.
A dimensão política da corrida está afirmada pelo Memorando da Troika e pelas directrizes claras do Governo português, sendo a palavra de ordem: redução do número de freguesias e municípios. Resta ao poder local entrar na corrida pela não extinção, ou seja, cada uma das freguesias ou municípios alegar ser maior e melhor que a vizinha ou vizinho. Os vencedores terão como prémio administrar os lugares perdedores.
Os deuses gregos, desalojados por falta de pagamento da varanda celestial de onde habitualmente espreitam os Jogos Olímpicos, foram substituídos pela Santíssima Troika, juíza atenta à grande competição autárquica. Esta mudança de divindades faz suspeitar uma possível substituição da democracia, cujo berço se localiza precisamente na Antiga Grécia, pela ditadura económica, uma coisa do Novo Mundo.
As regras estão definidas. Que comece a corrida!

Fernanda Cunha/ 03Out2011
(Artigo publicado no jornal Costa a Costa, no dia 17 de Outubro de 2011)