Alentejo. Muita terra, muita terra. Planícies que autorizam a expressão “Que grande é o mundo!” e serras que cortam a monotonia dos sobreiros e restolhos. Entre cidades encontramos presépios de cal branca que escondem as singularidades e as potencialidades das gentes e dos lugares.
Lugares fora do alcance das grandes cidades até aos finais do século XIX, por ausência das vias de comunicação. O reconhecimento da sua importância para o país, recém-saído de uma depressão económica herdada das invasões francesas e da guerra civil, foi a razão política que fez Fontes Pereira de Mello avançar com o projecto de construção de uma rede ferroviária e rodoviária, num esforço significativo para modernizar Portugal. Mesmo perante a grave depressão financeira da década 1890, o projecto ferroviário não parou.
A rede ferroviária pretendia chegar à fronteira com Espanha, na ambição de restituir a Lisboa o atributo de porto internacional para o comércio espanhol, e alcançar todas as povoações importantes do país. As principais cidades do interior alentejano estiveram incluídas, desde logo, nos primeiros projectos ferroviários, em 1884. Beja e Évora ficariam ligadas ao grande pólo industrial do Barreiro, com acesso fluvial a Lisboa.
Os carris de ferro foram avançando lentamente por entre terras e vales, mergulhando por serras e colinas e saltando sobre rios, graças ao crédito externo. Acreditava-se que o investimento económico compensaria a despesa. As estradas cresceram em conjunto com a linha férrea.
Pouca terra, pouca terra. O comboio aproximou terras. Impulsionou a agricultura e a indústria local, como aconteceu em Garvão (Linha do Sado) e provocou explosões demográficas em locais inesperados, por vezes no meio do nada, como aconteceu na Funcheira (Linha do Sado/Linha do Sul). Os serviços descentralizados da CP favoreceram a fixação de trabalhadores nas terras por onde parava o comboio.
O transporte rápido e fácil das mercadorias revolucionou a sociedade rural portuguesa. Os produtos da terra eram, até então, vendidos localmente ou comercializados nas feiras da região. Longe da possibilidade de escoar mercadoria, não havia vantagem em aumentar a produção. Com a chegada do comboio, as distâncias encolheram e a economia local ganhou a oportunidade de participar numa rede comercial maior.
A possibilidade de escoamento dos produtos agrícolas fez aumentar a produção. Os anteriores baldios e descampados, onde a comunidade podia colocar o gado a pastar ou recolher lenha, foram divididos e atribuídos aos particulares, para exploração. A superfície cultivada aumentou. O rendimento das pequenas propriedades tornou possível o acesso a melhores condições de vida e à escolaridade. A classe média surge no interior rural e as pequenas cidades progridem. A componente burocrática, típica das cidades grandes, trouxe consigo a criação de postos assalariados de trabalho.
Nos anos 60 do séc. XX, a industrialização destrona a produção agrícola. O investimento político foi dirigido para uma indústria baseada em baixos salários, o que implicava a manutenção artificial do custo de vida e, portanto, a fixação de preços baixos nos produtos agrícolas. Os desequilíbrios regionais provocados pela industrialização, protegida pelo Estado em detrimento da produção agrícola, tornaram-se publicamente preocupantes, porém, abafados pela ditadura salazarista. Novo êxodo do campo para a cidade. Através do comboio.
Pouca terra, nenhuma terra. Novembro de 2011. O Governo desactiva os serviços regionais onde considera haver baixa procura: linhas de Vendas Novas, Alentejo (no troço Beja-Funcheira), Leste, Oeste, Vouga e troço Caldas da Rainha-Figueira da Foz. O transporte de mercadorias mantém-se e a mobilidade das pessoas será assegurada por concessões rodoviárias ainda por estabelecer.
O endividamento de 16.700 milhões de euros da REFER é a justificação para as medidas impostas e o Plano Estratégico dos Transportes é a resposta ao compromisso assumido com a Troika, no qual se impunha a revisão da dimensão da rede ferroviária, racionalizando-a de acordo com a verdadeira vocação do caminho-de-ferro, de modo a aumentar a sustentabilidade financeira deste sector.
Para o Governo, a verdadeira vocação do comboio parece excluir a mobilidade regional, encontrando no transporte sub-urbano e no transporte inter-regional de grandes distâncias a competitividade e a sustentibilidade que ambiciona.
A redução de cerca de 40% das linhas regionais relativamente ao auge da sua actividade, em 1944, reduz drasticamente o serviço público de Mobilidade Regional. Cerca de 1.600km de linha ficarão indisponíveis aos passageiros do interior do País. No caso de Beja, a capital de distrito do Alentejo, a medida corta a ligação ferroviária desta cidade com o Algarve, destino profissional de muitos alentejanos.
Sem a electrificação da linha, oportunidade perdida no passado, o troço Funcheira-Beja ficou à margem da modernização, apenas autorizando a circulação da velha automotora a diesel, lenta e dispendiosa. Os horário disponíveis não permitiam uma ida e volta a Beja, com tempo útil para tratar assuntos ou trabalhar. A sempre previsível reduzida procura deste serviço justifica agora o encerramento da linha.
E se a visão fosse outra? Uma aposta nas linhas regionais de modo a assegurar uma mobilidade efectiva e eficaz que permitisse às populações rurais, à semelhança do que acontece nos meios urbanos, a utilização do comboio como uma verdadeira alternativa ao transporte rodoviário, mais moroso e poluente? No caso do troço Funcheira-Beja, os 62 km de linha e de serviço permitiriam o acesso das populações de Odemira, Ourique, Castro Verde, Almodovar e Aljustrel ao emprego em Beja. E vice-versa.
Não há alternativa, diz o Governo. Uma austeridade que nos é imposta sem se entender exactamente qual foi, no âmbito político, o erro de partida, ou qual é, no âmbito político, o ponto de chegada. Uma austeridade financeira, apolítica, órfã de um plano económico, cega e sem garantia de sucesso. O plano proposto poderá não ser suficiente, assim assume o Governo ao acrescentar que ainda em 2012 será reanalisada a necessidade de implementação de outras medidas de racionalização de oferta, de modo a atingir o equilíbrio operacional do sector ferroviário. Equilíbrio zero?
Sem o comboio, a dupla cicatriz de ferro na paisagem assinalará o abandono das zonas rurais. Da muita terra se fez pouca. Da pouca terra se fará nenhuma. Entre cidades restarão apenas solidões e descampado.
FC/Dez2011
(Artigo publicado no Jornal Costa a Costa de 16 de Dezembro de 2011)