domingo, 14 de junho de 2020

Escrita ao desafio: a cada destempo o seu sforzato


Destempo
(escreve Vítor Encarnação) 

Quando saiu do estúdio tinha a certeza que as fotografias não eram dele. Aliás, desconfiou logo da forma demasiado adulta como o trataram quando entrou na loja. Tinha ido sozinho. Enquanto caminhava embevecido pelas ruas sentia-se orgulhoso da sua autonomia e da responsabilidade que a mãe lhe dera em ir fazer o governo de tirar fotografias para o bilhete de identidade. Mirou-se ao espelho. Vestia calções de fazenda, camisa florida abotoada até ao pescoço, suspensórios, meia branca e sapatos afivelados de verniz. Olhe em frente. Não se mexa agora. Perfeito. Vamos tirar umas quantas para podermos escolher. Já está. Encostado ao balcão, com a nota de cem escudos dobrada em quatro e apertada na palma da mão direita, olhava para o desfile de fotografias daquele homem à espera que aparecessem as suas. Sentia uma enorme vergonha. Não era merecedor da confiança que a mãe tinha depositado nele. Falhara na primeira tarefa que lhe fora pedida e agora não era capaz de resolver a situação. Era um moço metido nuns calções e apenas os suspensórios lhe seguravam os olhos para não chorar. Como é que ia contar à mãe que gastara o dinheiro e levava as fotografias de um homem? Ligou o carro, mas antes de arrancar desviou o olhar da cara que lhe aparecia no espelho retrovisor.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
Sforzato
(responde Fernanda Cunha)

Tenho para mim que o destempo fixado em papel fotossensível 35 por 45mm, não o foi por distracção do fotografado, que se imobilizou correctamente diante da objectiva, vestido, penteado e calçado a rigor, ou por inaptidão do fotógrafo, que seguiu à risca o protocolo dos sensíveis sais de prata. Antes, terá sido matreirice da própria máquina fotográfica, que brinca com o tempo como ninguém ou coisa nenhuma, deslocando-o de trás para diante ou vice-versa, bastando-lhe uma piscadela de olho. Mas mais que isso, as máquinas fotográficas fixam a luz, a ambição de qualquer filósofo, e trazem a verdade às mãos espantadas de quem é fotografado em pose séria, tipo passe. Formato que não admite a camisa infantil, os calções de rapazola e os suspensórios que seguram a infância, deixando nu o jovem adulto. As máquinas fotográficas são especialistas em contratempo e sempre me pareceram dadas ao sentido crítico e humor subtil. Não admira que nos ponham nervosos no momento do disparo.


Junho/2020

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