Destempo
(escreve Vítor Encarnação)
Quando saiu do estúdio tinha a certeza que as fotografias
não eram dele. Aliás, desconfiou logo da forma demasiado adulta como o trataram
quando entrou na loja. Tinha ido sozinho. Enquanto caminhava embevecido pelas
ruas sentia-se orgulhoso da sua autonomia e da responsabilidade que a mãe lhe
dera em ir fazer o governo de tirar fotografias para o bilhete de identidade.
Mirou-se ao espelho. Vestia calções de fazenda, camisa florida abotoada até ao
pescoço, suspensórios, meia branca e sapatos afivelados de verniz. Olhe em
frente. Não se mexa agora. Perfeito. Vamos tirar umas quantas para podermos
escolher. Já está. Encostado ao balcão, com a nota de cem escudos dobrada em
quatro e apertada na palma da mão direita, olhava para o desfile de fotografias
daquele homem à espera que aparecessem as suas. Sentia uma enorme vergonha. Não
era merecedor da confiança que a mãe tinha depositado nele. Falhara na primeira
tarefa que lhe fora pedida e agora não era capaz de resolver a situação. Era um
moço metido nuns calções e apenas os suspensórios lhe seguravam os olhos para
não chorar. Como é que ia contar à mãe que gastara o dinheiro e levava as
fotografias de um homem? Ligou o carro, mas antes de arrancar desviou o olhar
da cara que lhe aparecia no espelho retrovisor.
Sforzato
(responde Fernanda Cunha)
Tenho para mim que o destempo fixado em papel fotossensível
35 por 45mm, não o foi por distracção do fotografado, que se imobilizou
correctamente diante da objectiva, vestido, penteado e calçado a rigor, ou por
inaptidão do fotógrafo, que seguiu à risca o protocolo dos sensíveis sais de
prata. Antes, terá sido matreirice da própria máquina fotográfica, que brinca
com o tempo como ninguém ou coisa nenhuma, deslocando-o de trás para diante ou
vice-versa, bastando-lhe uma piscadela de olho. Mas mais que isso, as máquinas
fotográficas fixam a luz, a ambição de qualquer filósofo, e trazem a verdade às
mãos espantadas de quem é fotografado em pose séria, tipo passe. Formato que
não admite a camisa infantil, os calções de rapazola e os suspensórios que seguram
a infância, deixando nu o jovem adulto. As máquinas fotográficas são
especialistas em contratempo e sempre me pareceram dadas ao sentido crítico e
humor subtil. Não admira que nos ponham nervosos no momento do disparo.
Junho/2020
Sem comentários:
Enviar um comentário