terça-feira, 11 de novembro de 2025

Na barra do tribunal

 















A verdade individual masculina, formada num sistema que a reconhece e valida, tende a confundir-se com a verdade dominante, assumindo o caráter de um olhar neutro ou universal sobre a realidade. O ponto de vista masculino não se apresenta como uma perspectiva entre outras, mas como a própria verdade em si. 

A verdade individual feminina, por sua vez, emerge da experiência do corpo, da vulnerabilidade, da memória afetiva e do silenciamento histórico. Expressa-se sobretudo no testemunho do vivido, resistindo à lógica do poder, da afirmação e da competitividade que marcam o discurso masculino.

A verdade judicial, chamada a arbitrar, procura ser objetiva, universal e fundada em normas e provas. No entanto, carrega inevitavelmente os vieses do contexto social que a produz. O que se apresenta como verdade perante o tribunal é, muitas vezes, a cristalização institucional de uma visão masculina do mundo. 

Enquanto as verdades masculinas não precisam justificar-se, as verdades femininas, tratadas como subjetivas ou emocionais, exigem comprovação segundo as normas e categorias que o sistema reconhece como válidas, numa linguagem jurídica que não as acolhe em sua totalidade. 

O choque entre essas verdades não é apenas narrativo, mas ontológico. Trata-se do embate entre o ser que fala e o ser que é autorizado a ser ouvido. A peça «À Primeira Vista», escrita por Suzie Miller («Prima Facie») e interpretada com intensidade arrebatadora por Margarida Vila-Nova, deixa-nos esta preciosa reflexão.

A justiça não é apenas uma questão de direito, é também uma questão de reconhecimento. Enquanto o machismo continuar a moldar o espaço do dizer e do crer, a verdade permanecerá um território desigual, onde o feminino ainda precisa provar o que o masculino apenas declara.

(fc/11nov2025)