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A verdade individual masculina, formada num sistema que a
reconhece e valida, tende a confundir-se com a verdade dominante, assumindo o
caráter de um olhar neutro ou universal sobre a realidade. O ponto de vista
masculino não se apresenta como uma perspectiva entre outras, mas como a
própria verdade em si.
A verdade individual feminina, por sua vez, emerge da
experiência do corpo, da vulnerabilidade, da memória afetiva e do silenciamento
histórico. Expressa-se sobretudo no testemunho do vivido, resistindo à lógica
do poder, da afirmação e da competitividade que marcam o discurso masculino.
A verdade judicial, chamada a arbitrar, procura ser
objetiva, universal e fundada em normas e provas. No entanto, carrega
inevitavelmente os vieses do contexto social que a produz. O que se apresenta
como verdade perante o tribunal é, muitas vezes, a cristalização institucional
de uma visão masculina do mundo.
Enquanto as verdades masculinas não precisam justificar-se,
as verdades femininas, tratadas como subjetivas ou emocionais, exigem
comprovação segundo as normas e categorias que o sistema reconhece como
válidas, numa linguagem jurídica que não as acolhe em sua totalidade.
O choque entre essas verdades não é apenas narrativo, mas
ontológico. Trata-se do embate entre o ser que fala e o ser que é autorizado a
ser ouvido. A peça «À Primeira Vista», escrita por Suzie Miller («Prima Facie»)
e interpretada com intensidade arrebatadora por Margarida Vila-Nova, deixa-nos
esta preciosa reflexão.
A justiça não é apenas uma questão de direito, é também uma questão de reconhecimento. Enquanto o machismo continuar a moldar o espaço do dizer e do crer, a verdade permanecerá um território desigual, onde o feminino ainda precisa provar o que o masculino apenas declara.
(fc/11nov2025)

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