A actual invasão sangrenta da Ucrânia, com tudo o que de
mau do séc. XX nos caiu no colo, fez-me mergulhar novamente no pensamento de
Hannah Arendt e no que dela aprendi, em busca de suporte racional para compreender
o que nos trouxe de novo aqui e encontrar alguma esperança que nos resgate.
O embaixador russo Gennady Gatilov (ver vídeo) diz-nos que
não estamos perante uma invasão de um país autónomo nem existe massacre de
civis ou destruição de cidades, mas sim um combate aos neonazis ucranianos
através de bombardeamentos delicados. O que é verdade e o que é mentira,
teremos nós mesmos de aferir, rejeitando a manipulação política.
A relação entre a verdade e a política foi alvo da atenção
de Arendt que, na sequência da controvérsia que se seguiu à publicação do livro
de Eichmann, escreveu o artigo Truth and Politics (1963), onde nos fala da
vulnerabilidade das verdades de facto, muitas vezes interpretadas como opinião,
outras, substituídas por uma mentira intencional.
As verdades de facto distinguem-se da opinião porque não se
trata de concordar ou consentir com a verdade, que é um facto, mas a circunstância
de necessitarem da confirmação de várias pessoas que testemunhem a sua
veracidade torna-as permeáveis às opiniões. Neste processo de certificação, a
forma como a verdade de facto é exposta ao público pode influenciar as opiniões
e as opiniões podem embaciar o apuramento da verdade de facto e validar uma
mentira. É uma pescadinha de rabo na boca, da qual os políticos estão perfeitamente
conscientes.
As tecnologias modernas de comunicação em massa facilitam a
manipulação de factos e a fabricação de uma outra realidade, conveniente a
alguns. No entanto, por muito elaborada que seja a mentira, a verdade de facto
parece ter o poder de se insurgir, mais cedo ou mais tarde. Esta possibilidade
está relacionada, por um lado, com a comunicação à escala mundial que permite o
confronto das “verdades de facto” dos diferentes países, impedido que haja
poderes suficientemente grandes que tornem a sua imagem “definitivamente
mistificadora”. Por outro lado, a verdade de facto, por se referir aos factos,
tem as suas raízes no passado, fora do alcance da mentira. Como os factos são
irreversíveis, acabam por se impor no presente.
A mentira, quando se ocupa dos factos do passado, trata o
passado e o presente a pensar no futuro, o que, em Arendt, significa que a
esfera política fica sem acesso ao verdadeiro passado, que tem sempre um efeito
estabilizador e, simultaneamente, sem acesso ao ponto a partir do qual poderia
começar qualquer coisa de novo. Ou seja, a sua força assenta em pés de barro. Durará
pouco, mas poderá destruir muito.
A única verdade sobre a qual podemos ter a certeza, diz-nos
Arendt, é aquela que corresponde ao que não podemos mudar, ou seja, o solo
sobre o qual nos mantemos e o céu que se estende por cima de nós. Para que não
sejamos manipulados descaradamente por quem se suporta na mentira e justifica a
guerra com a paz dos seus, estejamos atentos, procuremos elaborar a nossa
opinião com a mesma cautela de quem ama. De quem ama o mundo.
FC/23março2022
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