quinta-feira, 2 de março de 2023

«Os Irmãos de Leila», do cineasta iraniano Saeed Roustayi

 









O realizador iraniano Saeed Roustayi coloca-nos na sala, no quarto, na casa-de-banho, na cozinha, no corredor, nas escadas e no terraço da casa onde mora uma família disfuncional: o pai Esmail, falido, desvalido e viciado em ópio; a mãe, mulher conformada e obediente à desvirtude do marido; a filha Leila, que mantém a família, influencia os irmãos e desafia o pai; o filho Alireza, desempregado e pouco corajoso; o filho Parviz, que ganha a vida a limpar casas-de-banho, a comer e a fazer filhos; o filho Manouchehr, envolvido em esquemas fraudulentos de enriquecimento rápido; e o filho mais novo, Farhad, musculado e alheado da realidade social. 

A intimidade desta família toca-nos a pele e a realidade da ficção entra-nos corpo adentro, sem pedir licença. Encolhemo-nos na cadeira quando o velho Esmail se apequena, agigantando-se no ecrã; quando, sempre dobrado, se humilha ou humilha, não se respeitando a si nem respeitando os outros, que são os seus filhos; ou quando recebe o aplauso da família, no momento em que se senta na cadeira do patriarca; ou quando grita, fuma, come, urina ou defeca; ou quando leva uma bofetada da filha. Humores corporais, humores errantes, humores fracturantes, humor negro, que saltam da tela e nos atingem assim, a cru. Tudo serve para trazer à «sofreh» o tema que percorre todo o filme: a dignidade.  

A história passa-se em Teerão, onde vivem 12 milhões de habitantes, uma cidade como muitas outras do mundo: desigual. Os pobres da zona Sul nunca chegarão a ricos da zona Norte e as mulheres pobres da zona Sul nunca chegarão a ser gente nem a Sul nem a Norte. Talvez uma herança da guerra, dos embargos internacionais e do retorno à ideologia islâmica, ou melhor, certamente, uma herança da condição humana globalmente alienada, que afasta os homens da humanidade e os empurra para a animalidade.

A família de Esmail vive na zona Sul, aglomera-se por ali, na urbanização decadente, nos hospitais públicos e nas filas para o subsídio de desemprego. Leila e Parviz trabalham no centro comercial na zona Norte. Leila acredita existir a possibilidade de a sua família escapar à pobreza através da compra de uma loja, onde todos os irmãos possam trabalhar em modo próprio. Uma oportunidade que nasce da futura transformação de uma casa-de-banho em três lojas, mesmo ali, no centro comercial onde trabalha. Nenhum dos irmãos de Leila, nem a própria, têm dinheiro para a compra da loja, precisam das 40 moedas de ouro que pertencem ao pai, mas o pai precisa delas para ocupar, com honra, o lugar de patriarca-mor da família, como mandam os costumes e também o filho do patriarca anterior. Entre a honra do pai e uma vida mais condigna dos filhos, a família vê-se dividida e confrontada consigo mesma, envolvendo-se numa sucessão de conflitos e confusões, sem que se vislumbre um final feliz.

Leila é o soldado desta batalha pela dignidade, fá-lo em nome da família, numa cultura onde a mulher tem de se sujeitar ao homem e uma filha ao pai, não importando quão desprezível ele possa ser; ou quão irracional possa ser (é) a líbido do poder sobre os outros; ou quão insustentável é a fluidez do mercado financeiro, bastando um tweet de um presidente, na outra ponta do mundo, para alterar o valor do ouro que se tem em mãos e tramar quem confia nas regras do jogo. No final, sobra o desconsolo e a impotência, servidas juntamente com a comida, como de costume, na «sofreh», a toalha tradicional iraniana que se estende no chão e em torno da qual todos se sentam, na hora das refeições.

Saeed Poursamimi e Taraneh Alidoosti estão extraordinários nos papéis de Esmail e de Leila, mas os restantes actores do elenco não lhes ficam atrás: Navid Mohammadzadeh, Payman Maadi, Farhad Aslani, Mohammad Almohammadi, Navereh Farahani e Mehdi Hoseininia.  A excelente fotografia, sob a responsabilidade de Hooman Behmanesh, é parte importante no sucesso do filme.  

FC/março2023

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