domingo, 1 de junho de 2025

Cuerpo, Alma e Raíz … … ou a "rístina ânsia dionisíaca"
















Sentir

O compasso que vem das margens do tempo,

Dos pueblos que choram, em silêncio.

Demanda de corações antigos –

árabes, judíos, gitanos, andaluces.

 

Sentir

taconeo firme na terra molhada,

Sobre el dolor, la rabia, el miedo e la muerte.

Cuerpo de sangre em cante jondo,

Pase de pecho, dança total.


Sentir

 ¡Sí! ¡Somos!

De corpo inteiro, de sangre entera! ¡Somos!

Na vida sacra e na sombra da morte! ¡Somos!

Em contraluz e em contratiempo! ¡Somos!

¡Olé!

 


À Rocío, Margarida, Teresa e todas as Azules, pela oportunidade do espírito flamenco –

uma dança crua, visceral e ancestral, com raízes que atravessam línguas, terras e dores.

 


sexta-feira, 28 de março de 2025

Os Sentimentos

 












O Sublime foi o tema da sétima de dez sessões do ciclo de conferências dedicado aos Sentimentos, ou à maneira como cada um de nós tem acesso à vida, aos outros e a nós próprios, através da batuta de António de Castro Caeiro, nas sempre diferentes salas do CCB. Um roteiro sobre a subjectividade, o lado que nos vem do futuro como promessa, sem pretensão à verdade mas que, na verdade, é o que de mais objectivo temos no acesso ao mundo que nos desafia através do érōs e da controvérsia. António Damásio foi chamado a dizer que tudo o que nos contraria deixa lastro e que a consciência distendida do sentimento de si não admite nenhuma força de bloqueio, nem a morte. Agrada-me esta liberdade, que será o tema seguinte, no mês da revolução.

Ao longo dos últimos meses, António de Castro Caeiro foi dando ao conceito, espantando-nos com o movimento de resistência ao adormecimento que nos oferece a filosofia. Trouxe, como prova, a voz de outros filósofos. E como a filosofia e a literatura se tocam, trouxe também escritores. Jorge Luís Borges acredita que a literatura e a filosofia surgem do espanto perante o real. Se a permanência é onde somos, o tempo matará o espanto?, pareceu-me ouvir, ou perguntei eu, de mim para mim, enquanto o mestre prosseguia. Talvez não, porque cada instante tem a possibilidade dupla do nascimento e da morte, ouvi-o dizer. Por isso, e também porque cada experiência depende da forma como cada um habita o espaço e o tempo, não posso tomar como universal a verdade de Sartre, para quem o viver é sempre um perder.

Os gregos entraram-nos sentimentos adentro e ficou-nos o desejo de querer saber mais, nós que temos a mania de querer tudo. E se o prazer for mau?, questiona Sócrates, no desejo de chegar à questão seguinte. Ovídio não responde a Sócrates, mas indica-nos caminhos para a resposta, nas suas obras. Se somos no tempo, como defende Heiddegger, então o sentido da vida tem a lógica da antecipação, do desejo. Com o futuro a deliberar. E com espaço para a decepção, já agora. O desejo é imposto pelo exterior, precisa do corpo para se converter em conteúdo mundano e tem uma lógica de insaciedade ­ – ou adicção – se não houver compreensão, vai-nos dizendo Caeiro. A lógica do desejo termina com o prazer, que só será bom se for compreendido. Ser servidor do desejo é redutor, pois somos mais do que a nossa comichão, diria Sócrates.

Ira, fúria, cólera, raiva … sim, somos atmosféricos e temos um campo de forças para lá das fronteiras do nosso corpo, sobretudo se estamos irados. Somos reactivos, como Aquiles ou Hamlet. Sobre a ira, sabemos que é um desejo acompanhado de dor e que a partir dela não se constitui qualquer sentido ou controle sobre o outro. Mas porque somos animais com capacidade para o sentido, quando caímos em nós, damo-nos conta que caímos fora de nós – (ekstasis).

Nietzsche teve a palavra, Aristóteles também, mas é São Paulo quem vem em nosso socorro: «o amor não se ira facilmente». Sempre suspeitei do poder do amor. Na ausência do amor, talvez a nostalgia se imponha. Aprendi que não é um termo grego, mas é composto por dois termos gregos: nóstos + álgos (regresso a casa + dor). Na sua finitude, os gregos são nostálgicos, para eles o passado está adiante e o futuro lá atrás. E para nós? 

Ouvimos Rilke, Kant, Hölderlin e Bernardo Soares («Sim, outrora eu era daqui…»), mas foi Novalis quem me encantou, com a definição de filosofia. Diz ele que «a filosofia é a saudade de casa, um impulso para estar em casa em toda a parte». Caeiro lembra-nos que a forma inaugural, a tal casa, acontece apenas uma vez. A presença do passado, tal e qual ele é, não existe, pois o futuro repete-se, incapaz de nos devolver o passado. O futuro é o objecto da nostalgia. Mas, acrescenta o mestre, em cada instante poderá constituir-se a possibilidade nostálgica do momento, que é, pasme-se, a possibilidade de princípio, ou seja, aquilo que procuramos.

E surge a melancolia, um fenómeno da existência medido, segundo os gregos, pelo peso dos quatro humores – sangue, bilis amarela, bilis negra e fleuma – que variam ao longo do ano e com a idade. Tal tristeza traz-nos a questão: porquê? Talvez Platão e a sua excentricidade nos possam ajudar. Ouvimos. Mas e a tristeza, esse esvaziamento de sentido, essa desocupação, essa retenção do tempo? «Ah, isso! O relógio da vida parou agora mesmo», diz-nos Rimbau... 

A melancolia é simultaneamente som e fúria e vazio. Parece-nos ser um fardo, se nada fizermos para o evitar. Caeiro refere algumas tentativas, como a interrupção (horário organizado em horas e dias úteis e inúteis) ou a fuga para diante, como acontece hoje em dia com a euforia e a embriaguez desmesurada. A oração é a solução das ordens religiosas para o vazio e a monotonia. Belo truque. Talvez a criatividade nos possa ajudar. Ou a filosofia, pois a possibilidade do tempo é a possibilidade da filosofia. Cada sentimento traz consigo uma chave para a resolução, um sentido, acalmou-nos o professor, dando-nos esperança.

A ideia de que o contrário do esvaziamento do tempo é o seu preenchimento agrada-me. Talvez possa responder à tristeza com a alegria perante o sublime das pequenas coisas. Uma reflexão sobre o sublime impõe-se em tempo de crise.

Para o sublime, Caeiro convidou Longin, Homero, Kant, Aristófanes, Rilke, Viggo Borg e Philip Roth. O sublime acontece no instante em que vemos algo que nunca havíamos visto, que nos provoca perplexidade, causa espanto, nos assombra e nos deixa imobilizados. Surge como se fosse uma revelação. Kant, por exemplo, põe-nos em contacto com a natureza de carácter extraordinário, como os oceanos, os ciclones, as montanhas, não no que são mas como nos aparecem. Mas mais interessante é o alerta que nos faz relativamente à diferença entre o Belo e o Sublime. O primeiro está circunscrito às fronteiras de um dado objecto, seja da natureza ou artístico. O segundo não está aprisionado a nenhum objecto, não tem forma, é imensurável, transcendente, angustiante e extasiante. Provoca uma inibição de forças. A mente é, alternadamente atraída e repelida, sentimo-nos envolvidos, contaminados por qualquer coisa que excede os dados materiais. «Sente-se uma ansia de ir até ao infinito», afirma Kant. Não se trata de um objeto dos sentidos, mas de uma cadência, uma vibração da alma, diz-nos Caeiro.

Schiller também procurou compreender como o sublime afeta as emoções e a razão humana. Para si, sublime não é apenas uma questão de grandiosidade ou beleza, é também uma experiência de elevação moral e espiritual, que nos conecta com algo maior do que nós mesmos. O sublime liberta enquanto o belo nos aprisiona. Subitamente e não gradualmente. 

Longin entende o sublime como grandeza do pensamento: «Nem mesmo o universo inteiro é suficiente para o alcance do pensamento humano». Já para Rilke, o sublime está nas pequenas coisas que para o comum dos mortais é banal, mas para o poeta não. O poeta vive como um desconhecido no vão da sua própria casa. O poeta coincide com cada um de nós. Para Philip Roth, no céu estrelado vê-se o vasto cérebro do tempo, dando o mote ao professor, que termina a sessão com a afirmação de que as estrelas são indispensáveis.

Fico à espera da liberdade, do amor e da esperança, com a certeza do espanto.  

(fc/28março2025)

Escuela de Baile Rocio Columé.

 















De Andaluzia para o mundo, eis a Escuela de Baile Rocio Columé. Estoy encantada! Olé!

O flamenco é uma dança que não deixa margem para dúvida. Forte na expressão, vai buscar às culturas árabe, judaica, cigana e andaluza, a angústia, a tristeza, o medo, a alegria, a coragem, o arrojo e a determinação das gentes que foram resistindo - e ainda hoje resistem em diferentes partes do mundo - às perseguições e às fúrias de outros povos com sede de exclusão e morte. É, como a maior parte da expressão artística, uma forma de resistência.
Esta paixão andaluza afirma-se pelas palmas, pelo violão, por outros instrumentos que se acrescentem, às vezes por orquestras inteiras, por cantares quase primitivos (no sentido da proximidade à emoção pura), pelo sapateado que se impõe e pela firme graciosidade do bailar, sempre em desafio e com uma desarmante beleza. O flamenco é uma dança de corpo inteiro. Olé!
(fc/março/2025)