O Sublime foi o
tema da sétima de dez sessões do ciclo de conferências dedicado aos Sentimentos, ou à maneira como cada um
de nós tem acesso à vida, aos outros e a nós próprios, através da batuta de
António de Castro Caeiro, nas sempre diferentes salas do CCB. Um roteiro sobre
a subjectividade, o lado que nos vem do futuro como promessa, sem pretensão à
verdade mas que, na verdade, é o que de mais objectivo temos no acesso ao mundo
que nos desafia através do érōs e da
controvérsia. António Damásio foi chamado a dizer que tudo o que nos contraria
deixa lastro e que a consciência distendida do sentimento de si não admite
nenhuma força de bloqueio, nem a morte. Agrada-me esta liberdade, que será o tema seguinte, no mês da revolução.
Ao longo dos últimos meses, António de Castro Caeiro foi dando ao conceito, espantando-nos com o movimento de resistência ao adormecimento que nos
oferece a filosofia. Trouxe, como prova, a voz de outros filósofos. E como a
filosofia e a literatura se tocam, trouxe também escritores. Jorge Luís Borges acredita
que a literatura e a filosofia surgem do espanto perante o real. Se a permanência
é onde somos, o tempo matará o espanto?, pareceu-me ouvir, ou perguntei eu, de
mim para mim, enquanto o mestre prosseguia. Talvez não, porque cada instante
tem a possibilidade dupla do nascimento e da morte, ouvi-o dizer. Por isso, e
também porque cada experiência depende da forma como cada um habita o espaço e
o tempo, não posso tomar como universal a verdade de Sartre, para quem o viver
é sempre um perder.
Os gregos entraram-nos sentimentos adentro e ficou-nos o desejo de querer saber mais, nós que
temos a mania de querer tudo. E se o prazer for mau?, questiona Sócrates, no
desejo de chegar à questão seguinte. Ovídio não responde a Sócrates, mas indica-nos caminhos para a resposta,
nas suas obras. Se somos no tempo, como defende Heiddegger, então o sentido da
vida tem a lógica da antecipação, do desejo. Com o futuro a deliberar. E com espaço para a decepção, já
agora. O desejo é imposto pelo exterior, precisa do corpo para se converter em
conteúdo mundano e tem uma lógica de insaciedade – ou adicção – se não houver
compreensão, vai-nos dizendo Caeiro. A lógica do desejo termina com o prazer,
que só será bom se for compreendido. Ser servidor do desejo é redutor, pois
somos mais do que a nossa comichão, diria Sócrates.
Ira, fúria,
cólera, raiva … sim, somos atmosféricos e temos um campo de forças para lá das
fronteiras do nosso corpo, sobretudo se estamos irados. Somos reactivos, como
Aquiles ou Hamlet. Sobre a ira, sabemos que é um desejo acompanhado de dor e
que a partir dela não se constitui qualquer sentido ou controle sobre o outro. Mas
porque somos animais com capacidade para o sentido, quando caímos em nós,
damo-nos conta que caímos fora de nós – (ekstasis).
Nietzsche teve a palavra, Aristóteles também, mas é São Paulo quem vem em nosso socorro: «o amor não se ira facilmente». Sempre suspeitei do poder do amor. Na ausência do amor, talvez a nostalgia se imponha. Aprendi que não é um termo grego, mas é composto por dois termos gregos: nóstos + álgos (regresso a casa + dor). Na sua finitude, os gregos são nostálgicos, para eles o passado está adiante e o futuro lá atrás. E para nós?
Ouvimos Rilke,
Kant, Hölderlin e Bernardo Soares («Sim,
outrora eu era daqui…»), mas foi Novalis quem me encantou, com a definição
de filosofia. Diz ele que «a filosofia é a saudade de casa, um impulso para estar
em casa em toda a parte». Caeiro lembra-nos que a forma inaugural, a tal casa,
acontece apenas uma vez. A presença do passado, tal e qual ele é, não existe,
pois o futuro repete-se, incapaz de nos devolver o passado. O futuro é o
objecto da nostalgia. Mas, acrescenta o mestre, em cada instante poderá
constituir-se a possibilidade nostálgica do momento, que é, pasme-se, a
possibilidade de princípio, ou seja, aquilo que procuramos.
E surge a melancolia, um fenómeno da existência medido, segundo os gregos, pelo peso dos quatro humores – sangue, bilis amarela, bilis negra e fleuma – que variam ao longo do ano e com a idade. Tal tristeza traz-nos a questão: porquê? Talvez Platão e a sua excentricidade nos possam ajudar. Ouvimos. Mas e a tristeza, esse esvaziamento de sentido, essa desocupação, essa retenção do tempo? «Ah, isso! O relógio da vida parou agora mesmo», diz-nos Rimbau...
A melancolia é simultaneamente
som e fúria e vazio. Parece-nos ser um fardo, se nada fizermos para o evitar. Caeiro
refere algumas tentativas, como a interrupção (horário organizado em horas e
dias úteis e inúteis) ou a fuga para diante, como acontece hoje em dia com a
euforia e a embriaguez desmesurada. A oração é a solução das ordens religiosas
para o vazio e a monotonia. Belo truque. Talvez a criatividade nos possa
ajudar. Ou a filosofia, pois a possibilidade do tempo é a possibilidade da
filosofia. Cada sentimento traz consigo uma chave para a resolução, um sentido,
acalmou-nos o professor, dando-nos esperança.
A ideia de que o contrário do esvaziamento do tempo é o seu
preenchimento agrada-me. Talvez possa responder à tristeza com a alegria
perante o sublime das pequenas coisas. Uma reflexão sobre o sublime impõe-se em
tempo de crise.
Para o sublime, Caeiro
convidou Longin, Homero, Kant, Aristófanes, Rilke, Viggo Borg e Philip Roth. O
sublime acontece no instante em que vemos algo que nunca havíamos visto, que
nos provoca perplexidade, causa espanto, nos assombra e nos deixa imobilizados.
Surge como se fosse uma revelação. Kant, por exemplo, põe-nos em contacto com a
natureza de carácter extraordinário, como os oceanos, os ciclones, as montanhas,
não no que são mas como nos aparecem. Mas mais interessante é o alerta que nos
faz relativamente à diferença entre o Belo e o Sublime. O primeiro está
circunscrito às fronteiras de um dado objecto, seja da natureza ou artístico. O
segundo não está aprisionado a nenhum objecto, não tem forma, é imensurável, transcendente,
angustiante e extasiante. Provoca uma inibição de forças. A mente é,
alternadamente atraída e repelida, sentimo-nos envolvidos, contaminados por
qualquer coisa que excede os dados materiais. «Sente-se uma ansia de ir até ao infinito», afirma Kant. Não se
trata de um objeto dos sentidos, mas de uma cadência, uma vibração da alma,
diz-nos Caeiro.
Schiller também procurou compreender como o sublime afeta as emoções e a razão humana. Para si, sublime não é apenas uma questão de grandiosidade ou beleza, é também uma experiência de elevação moral e espiritual, que nos conecta com algo maior do que nós mesmos. O sublime liberta enquanto o belo nos aprisiona. Subitamente e não gradualmente.
Longin entende o sublime como grandeza do pensamento: «Nem mesmo
o universo inteiro é suficiente para o alcance do pensamento humano». Já para Rilke,
o sublime está nas pequenas coisas que para o comum dos mortais é banal, mas
para o poeta não. O poeta vive como um desconhecido no vão da sua própria casa.
O poeta coincide com cada um de nós. Para Philip Roth, no céu estrelado vê-se o
vasto cérebro do tempo, dando o mote ao professor, que termina a sessão com a
afirmação de que as estrelas são indispensáveis.
Fico à espera da liberdade, do amor e da esperança, com a
certeza do espanto.
(fc/28março2025)
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