sexta-feira, 2 de outubro de 2015

De Queluz a Entrecampos























O dia ainda tem ramelas quando o comboio abre as portas em Queluz, para receber mais uma massa de gente a caminho do emprego ou do trabalho ou do estágio ou da segurança social ou não sei. A caminho de qualquer coisa. Este país estranho. Entramos e nem procuramos assento, pois já há pessoas em pé. Existe uma tendência, quase regra, na ocupação dos espaços, independente do género, da cor, do credo, da classe social ou da língua nativa. O que nos moverá na escolha?

Para descobrir a primeira regra, precisamos recuar algumas estações, quando o comboio ainda vem vazio. Os lugares de frente, junto à janela são os mais procurados. Se for Inverno, os do lado do Sol, se for Verão, os do lado da sombra. Manda a glândula pineal. Depois, os da frente a estes lugares que por acaso são os de costas ao sentido da viagem, comprovando-se a relatividade das coisas. Quem tem pernas compridas ou muitos sacos, prefere o quadrante mais distante, junto da coxia. Sentado na oblíqua ao passageiro inicial, tem a esperança de poder esticar as pernas ou arrumar a trouxa no chão. Esperança vã porque logo a seguir preenche-se todos os lugares vazios. Há quem corra e empurre os mais lentos, quando a probabilidade de um assento se aproxima do zero. Os últimos a serem ocupados são os lugares destinados às grávidas, idosos e pessoas com crianças ao colo. Manda o protocolo e respeita-se, porque o risco de perder o lugar é elevado. Na verdade, e contrariando as estatísticas, há muitas grávidas e crianças ao colo e, confirmando as estatísticas, há muitos idosos (é necessário rever as teorias probabilísticas). Em Paris, a prioridade é dada aos estropiados da II Grande Guerra, lembrando a quem não a viveu, que a guerra amputa a humanidade. Mas não estamos em Paris e nem participámos na II Grande Guerra. Não daquela maneira. Vantagem lusitana.

Nos lugares em pé, pratica-se a regra da equidistância, coisa que a ciência explica através da teoria do espaço vital de cada espécie animal, vegetal, fúngica, protista ou monera. Pobre natureza humana que vive encolhida no seu, por via da dita civilização. Como é regra de toda a regra, também nesta regra há excepções. A do grupo muito significativo de pessoas que vive a correr, mesmo quando está parado no comboio. Distingue-se pela insistência em permanecer junto das portas, atrapalhando quem entra, sobretudo as portas próximas das plataformas de saída, nas estações. Um cálculo a duas variáveis bem conseguido. Para estes, manda a pressa do relógio.

Restam mais duas excepções. Aqueles que, por razões que a razão desconhece, insistem em viajar corpo a corpo, bafo a bafo, numa proximidade não autorizada pela outra pessoa. Teimosias destrambelhadas ou hormonas de trazer por casa, não sei. Aprende-se a evitá-los. É mais interessante a outra excepção: os amigalhaços que jogam uma boa cartada. Vêm de longe e sentam-se frente a frente, nos quatro lugares centrais. Vão divertidos.

Aliás, todos parecem ocupados, cada um à sua maneira, excepto os que dormitam. Quem estiver atento, pode brincar ao jogo da adivinha. Que história se lê naquele livro de capa azul, quem vestirá o camisolão que aqui se tricota, que curso frequenta o jovem que leva um caderno A4 cheio de fórmulas, que notícia lê o senhor de fato e gravata, porque murmura o leitor da Bíblia ou do Corão. Uma senhora maquilha-se. O rimel, a sombra, o eyeliner, a base e o batom desfilam, à vez, para um espelho de mão. Adivinha-se a intenção. Ouvem-se rasgos de música ao longe. Não, afinal é apenas o drum n’ bass que escapa dos auriculares baratos, pendurados nos ouvidos do rapaz aqui ao lado. Adivinha-se a música. Também se conversa ao telemóvel. Fala-se alto para o pequeno paralelepípedo, como se fosse um megafone. Ouve-se metade da conversa, adivinha-se o resto: fins de namoro, mimos de amantes, avisos maternais, segredos femininos (ai os segredos, tão maltratados) ou queixas do trabalho (na maioria dos casos, das colegas do trabalho). Joga-se, joga-se muito, joga-se cada vez mais. No telemóvel ou no tablet, de si para si, adversários de si próprios. Neste caso, nada se adivinha. O olhar vai mudo.

Hoje, havia uma clareira estranha junto dos bancos ao comprido, de costas para a janela. Precipitei-me para lá, em busca do meu espaço vital. Com licença, com licença, quase a chegar… ah! Faltavam os varões de apoio. Olhei para o tecto do comboio. Nem marca. Não foram arrancados porque não chegaram a ser colocados. Será defeito? O país anda realmente estranho, se os comboios (e tudo o resto) são vandalizados intencionalmente à nascença. Acomodei-me ao espaço disponível e procurei o auto-equilíbrio, na ausência do varão. Ainda bem que vim de ténis. Abri o livro e comecei a ler Levante-se o Réu, de Rui Cardoso Martins.

Amadora, Reboleira, Damaia … as estações passaram por mim sem eu passar por elas. Tinha saído da mole humana para entrar, de outra forma, na mesma mole humana (a boa ficção tem destas coisas). Pelo banco dos réus (lugar sentado!) passam mães e filhas em acusações trocadas («puta, comprida, puta, comprida») e neto de dois anos, um serial masturbator, o homem da catana e de como não ser romano em Roma é tramado, pai e filha toxicodependentes de uma heroína democrática, Constantino, o homem da mão postiça, o arrependido que irá viver a sua pessoa de outra maneira, o sacaninha da Mourita, H., o rapaz da mota… cheguei à página 48 onde «o mundo é profundamente injusto», mas não tive tempo de a ler. Entrecampos, estação de destino. Saí. O dia tinha outra luz.


FC/outubro2015


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