António De Castro Caeiro e Luís Gouveia Monteiro conversaram,
a pés juntos, sobre a liberdade, a morada da liberdade e a sua possibilidade,
na Casa da Cultura de Setúbal, no serão de sexta-feira última. Sabemos de nós pelas
palavras, por isso me foi tão grato ter posto os meus pés naquela excitação
quântica apontada à consciência da liberdade.
A palavra teve lugar sagrado e não houve espaço para a
demagogia, que floresce daninha sempre que a necessidade se impõe à verdade,
nos fractura o mundo comum e nos rouba a liberdade. Diz-nos Sophia: «Com
fúria e raiva acuso o demagogo/Que se promove à sombra da palavra/E da palavra
faz poder e jogo/E transforma as palavras em moeda/Como se fez com o trigo e
com a terra» (1974).
Vivemos convencidos de que somos livres, tontos de nós, que
apenas resistimos ou sobrevivemos em solidão organizada das massas, qual placa
de Petri onde se cultiva a ignorância, vendendo a todo o momento a nossa
liberdade, o nosso tempo, o nosso pensamento. Num mundo cada vez mais
manipulado e precipitado para o pensamento único, a liberdade tem vindo a
perder o seu carácter absoluto e encontra-se, de novo, remetida para a esfera contemplativa
dos pensadores, dos artistas e dos escritores, refugiada das fragilidades dos
assuntos políticos. A conversa entre António Caeiro e Luís Monteiro foi uma
acção de partilha e resistência dentro de portas. Aplaudo a iniciativa.
A liberdade foi apresentada como uma possibilidade de si, podendo
expressar-se através da paixão, que nos rouba o chão para depois, talvez, nele
nos virmos a estatelar, mas que importa isso se o valor da paixão é a própria
paixão e não mais que isso? Uma colecção de defuntos certificará tal liberdade,
mas atenção, a adicção pela sofreguidão leva-nos à prisão. Quem fala destas
paixões falará de todas as outras e, em todas elas, findo o período de estranha
metamorfose, vemo-nos acrescentados de vida, mundo, autenticidade e liberdade e
sentimo-nos mais preparados para amar.
A liberdade não é ausência de compromisso, mas o seu
contrário, com o atributo do espanto, da espontaneidade, da curiosidade e da
disponibilidade para o novo. A liberdade é a forma de seguir a saudade até
chegarmos a casa, à nossa essência, assim aprendi ali. A liberdade é a
possibilidade de escolha, conjugada com a serenidade e, atrevo-me a dizer, também
com o afecto. Jorge Palma tem razão, «a liberdade é uma maluca que sabe quanto
vale um beijo».
Saramago está presente nos muros da pequena polis da liberdade, na Casa da Cultura
de Setúbal, qual guardião da mais elevada forma da vida humana. Talvez ele nos
explique melhor o que é a liberdade. Fui roubar-lhe um trecho de Levantado do Chão (1980):
«Porém, dali a Monte Lavre foi António Mau-Tempo pensativo
porque dera com duas gotas de água na palma da mão e não atinava de onde teriam
elas vindo, tanto mais que não se misturavam uma com a outra, rolavam como
pérolas, são prodígios também no latifúndio costumados, só os presunçosos têm
dúvidas. Estamos que António Mau-Tempo ainda hoje teria as gotas de água, se ao
chegar a casa, no gesto de abraçar a mãe, elas não lhe tivessem escapado da mão,
e voado pela porta fora, ruflando umas asas brancas. Que pássaros são estes, Não
sei, minha mãe».
Fernanda Cunha/25Abril2022
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