quarta-feira, 18 de maio de 2022

"This Much I Know To Be True"

 














"This Much I Know To Be True" é um filme-documentário de Andrew Dominik sobre o processo criativo de Nick Cave & Warren Ellis, com músicas ao vivo dos álbuns “Ghosteen” (2019) e “Carnage” (2021) e uma participação especial de Marianne Faithfull. A extraordinária fotografia é de Robbie Ryan.
Como prelúdio, Nick apresenta-nos, à luz do dia e trajando uma bata branca de escultor, as 18 estatuetas do Diabo, criadas por si durante o confinamento Covid, que nos contam a vida do Diabo desde o nascimento até à morte. Uma vida banal, com o remorso a surgir mais adiante, e uma profunda e dolorosa paixão quando, no final, se ajoelha aos pés de uma criança, pedindo perdão. As restantes estatuetas parecem ser tão-somente o cumprimento de uma caminhada recta e solitária entre o nascimento e a morte, como ordenam os mandamentos.
Depois, entramos noite adentro, onde dorme o antiquíssimo do mundo, pela voz de Nick, central num salão despojado de tudo o que é supérfluo. Ali, apenas as três vozes do coro, os quatro violinistas, o baterista e Warren Ellis, essa extraordinária figura tribal e transcendente, o homem de todos os instrumentos, incluindo o do corpo e o do arrepiante grito da alma, em absoluta sintonia com Nick. Dois gigantes captados por duas câmaras numa pista circular, alcançando-se entre si e deixando ver um pouco dos bastidores da acção.
Somos tomados pelas canções-poesia ou canções-filosofia que se vão sucedendo em crescente catarse, como se fossem sempre a última; pela força do coro, dos violinos, do uivo de Warren e das luzes, que irrompem diante dos nossos olhos, gelando-nos o pensamento; e pelo movimento dos corpos de Nick e de Warren à medida que a música flui naquele espaço feito de sensibilidade, natureza e noite, obrigando-nos a olhar para o nosso próprio mundo interior e recusado.
Seria avassalador, não fosse a sequência das canções interrompida, aqui e ali, por pequenos excertos descontraídos que nos mostram pormenores da vida de Nick e de Warren, a atitude de Nick perante as mais de 30 mil mensagens que recebe no site The Red Hand Files e que o mantém racional, e a forma como lida com a desordem fértil de Warren e lhe reconhece generosidade artística e pessoal. Marianne Faithfull aparece envelhecida, sentada numa cadeira de rodas e ligada ao oxigénio, que retira para poder ler uma canção-falada de Nick. Desconcertante.
Nestes momentos, respiramos fundo e recuperamos do choque que é a descida às nossas próprias entranhas. Salva-nos a extraordinária beleza deste filme-catarse que, ao mesmo tempo que aprofunda os sentimentos mais obscuros que Nick coloca nas suas canções, também os alivia, permitindo-nos olhar de frente para tanto desespero, paixão e dor. «It's a long way to find peace of mind, peace of mind », canta-nos Nick.
«Todos vivemos as nossas vidas perigosamente, num risco constante, à beira da calamidade. Com o tempo, descobrimos que não temos o controlo de tudo. Nunca tivemos. Nunca teremos», diz-nos Nick. Precisamos reconhecer essa limitação e levar mais a sério a sensibilidade e a noite, onde se esconde o mito, o mistério anterior à história e às sagradas escrituras de onde nos surgem os ditames de Deus e do Diabo. Talvez assim, livres do desejo de uma felicidade catalogada, possamos encontrar o sentido das coisas e da vida. O cantor confessa, no final, querer libertar-se dos rótulos de músico e escritor, para ser apenas marido, pai, amigo e cidadão. Grande Nick, grande Warren, grande Andrew, grande Robbie. Enorme filme.

FC/maio2022

(2ª foto: Charlie Gray)

Sem comentários:

Enviar um comentário