quinta-feira, 2 de julho de 2015

Celebrar a importância das palavras, com Hannah Arendt




















desenho de Marta Madureira



As palavras andam arredadas da nossa paisagem actual. A crise da esfera política deve-se, sobretudo e em primeiro lugar, à ausência de palavra (enquanto comunicação), ao domínio das esferas pré-politicas da economia e da burocracia sobre o político, e, também, ao esvaziamento do espaço público enquanto espaço de pluralidade, em consequência da substituição da acção de cidadania pelo comportamento, que normaliza as formas de relacionamento entre os homens, tornando-os indistintos e eliminando a possibilidade do novo. Sem um mundo comum não é possível a troca de opiniões, a forma possível da participação activa dos homens nos assuntos políticos. Tudo passa a ter apenas uma única perspectiva, a do governante.

Vivemos, actualmente, uma espécie de democracia que impõe a sua vontade perante o povo em nome da segurança e da economia, lembrando os antigos chefes de família, que agem despoticamente, de forma apolítica, vedando a liberdade daqueles que se encontram sob a sua hierarquia. Em consequência, vivemos tempos que são de silêncios e camuflagens, de discursos sem palavra, que nada revelam, de exortações morais que nada acrescentam ou de trivialidades sem sentido. A estes tempos se seguirão outros: de desordem e de fome, de injustiça e de desespero. 

A sociedade de massas é o último estágio do processo evolutivo das sociedades, e corresponde à absorção dos vários grupos sociais por um só, a própria sociedade no seu todo. É a esta igualdade indistinta que aspira a sociedade de massas, uma igualdade radicalmente diferente da que existia na esfera pública plural da antiguidade. A política economicista, que encontra na sociedade o locus perfeito, nasce da premissa de que os homens se comportam em vez de agirem. Neste contexto, o que importa são os dados estatísticos que quantificam os comportamentos e determinam a política representativa. Vivemos uma paradoxal sociedade de individualismos, onde a singularidade própria de cada homem foi remetida para a intimidade, por tratar-se de assuntos privados de cada um.

Uma das consequências da emergência da sociedade de massas é a decadência da esfera pública. Com a ausência da acção e do discurso, banidas para a esfera da intimidade, e o conformismo característico da sociedade de massas, o mundo comum desaparece. Vivemos em democracia mas alienados da política. Esta alienação permitiu que governos invisíveis assumissem o comando, refugiados em números e burocracia. 

A política caiu sobre o jugo da necessidade imposta pela vida económica e social, e perdeu a capacidade de ser livre. O compromisso político perdeu o valor e a esperança começa a apagar-se. O próprio discurso político tem vindo a esquecer o valor das palavras. E com elas, a capacidade de compromisso e a esperança, valores fundamentais em política. 

Se queremos recuperar o mundo temos que fazê-lo a partir da acção, a única actividade que reconcilia, que une. Recuperar a autenticidade da acção implica resgatar a esfera pública e política das esferas económica, religiosa, social e cultural, por onde anda perdida. Resgatar o espaço público, Mas para que a nossa intervenção tenha conteúdo, para que possamos exigir qualidade na política há que fazer algum trabalho de casa, na intimidade. O primeiro passo poderá ser a leitura (o próprio vazio da actualidade impele-nos a ler). A literatura e a filosofia devolvem a palavra, alimentam a pluralidade e podem tornar mais exigente a prestação política.

Hannah Arendt reafirma a importância das palavras na reabilitação do lugar político. Filósofa judia alemã, viveu os tempos sombrios do séc. XX, como foram os regimes totalitários de Staline e de Hitler, os campos de concentração, as guerras mundiais, as ditaduras do sul da Europa. As catástrofes políticas e as calamidades morais e, em contraponto, as revoluções, constituíram o ponto de partida para a reflexão de Arendt, pensadora de temas como a violência, a autoridade e o poder. Celebremos o seu aniversário (14 de Outubro) partilhando o seu pensamento. Este texto é um convite à leitura de Hannah Arendt, cuja actualidade é confirmada pelos tempos conturbados que vivemos.  

 “Não estou de modo algum segura ou certa da minha esperança, mas estou convencida de que, tão importante quanto confrontar impiedosamente todos os desesperos intrínsecos do presente, é apresentar todas as esperanças inerentes a ele” Hannah Arendt em A condição humana (1958).


FC/14out2014

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