quinta-feira, 2 de julho de 2015

De Garvão ao mundo...








Garvão é uma povoação muito antiga. A sua história estende-se até à Idade do Bronze (séc. II a.C.), muito para lá da oralidade possível, testemunhada apenas pelos vestígios arqueológicos recuperados do Cerro do Castelo, por isso mesmo reconhecido, por decreto,  como imóvel de interesse público. As ribeiras de Garvão e Pimentas, que alimentam um rio maior, o Sado, provavelmente importantes vias de comunicação entre o litoral e o interior, e a fértil várzea, terão sido razão suficiente para ali se fixar e desenvolver um povoado. Um povo particular, dono de uma espiritualidade própria, a julgar pelo depósito votivo encontrado, que sugere a existência de um santuário perpetuado no tempo. São exemplos as inúmeras placas oculadas em ouro e prata, que apontam para o culto de uma divindade com poderes profilácticos nas doenças de olhos.  A importância do lugar deu continuidade à sua ocupação ao longo dos tempos. Aqui se reconhecem vestígios da presença celta, romana e árabe. Ao topo da colina que recebeu os primeiros núcleos populacionais, tomemos a liberdade literária de lhe chamar primeira cintura.

Durante a Idade Média, o povoado cresceu para fora das muralhas do Cerro do Castelo. Este núcleo habitacional ganhou importância com o reconhecimento religioso e político, enquanto priorado e comenda da Ordem de Santiago. Obteve o primeiro foral em 1267, através do Mestre D. Paio Peres Correia, e o segundo foral em 1512, através de D. Manuel I. A Igreja Matriz de Garvão, dedicada à Nossa Senhora da Assunção e com assinatura manuelina, encabeçava a paróquia tutelada pelo Arcebispo de Évora, da qual também faziam parte as ermidas Espírito Santo, São Pedro e São Sebastião. A Casa da Misericórdia e o Hospital cobriam as necessidades sociais e de saúde da população. Garvão, sede de concelho, administrava também a freguesia de Santa Luzia. Tinha um alcaide, vereadores, escrivães e tabeliães. A importância exterior da vila traduzia-se pela sua representação nas cortes de Portugal através de um procurador. Também no campo da justiça, Garvão estava apetrechado com dois juízes ordinários e um juiz de órfãos. Militarmente, foi sede de uma Companhia de Ordenança. Nesses tempos, Garvão, que se organizava economicamente em torno da produção de mel, trigo, pão, gado, carne de porco e caça, cresceu até à margem esquerda da ribeira de Garvão. Chamemos-lhe a segunda cintura.   

Em 1888 é inaugurada uma nova estação do caminho-de-ferro que liga Casével e Amoreiras (Linha do Sul): a Estação de Garvão. Localizada a 500m para oeste do Cerro do Castelo, fez nascer a área industrial, composta por fábricas de moagem e de cortiça, com impacto na economia da região. A pequena industria artesanal teve também lugar: sapateiros, latoeiros, ferreiros, albardeiros, etc. O casario expandiu-se a partir da estação e a população instalou-se. Em 1911, na sequência da construção da Linha do Sado, Garvão ganhou uma segunda estação ferroviária, localizada 2 km a norte da vila. Uma nova população veio reforçar os censos. Com duas estações, Garvão ganhou fôlego e superou de um período de asfixia agrícola e perda da concelhia para Ourique, em consequência da reforma administrativa de Mouzinho da Silveira (1836). A vila expandiu-se para o vale, de fronte para o Cerro do Castelo. O vale e as duas estações formam a terceira cintura.

Actualmente, as ribeiras apresentam um caudal muito reduzido, as indústrias fecharam e o comboio passa indiferente. primeira cintura corresponde a uma área isenta de construção, onde os sinais do passado se confundem com a natureza, persistindo apenas restos de muros intemporais que esboçam uma espécie de muralha no topo do monte; e um ferida aberta na encosta virada a nascente, resultante das escavações arqueológicas dos anos 80, que parece clamar pelo desfecho: o retorno do depósito votivo a Garvão.  

segunda cintura, que se inicia a meia altura da encosta histórica, mantém uma urbanização composta por casas e quintais separados por ruas estreitas e irregulares. Lugar ainda do poder político/administrativo e religioso: a sede da Junta de Freguesia, a Casa Mortuária, a Igreja Matriz de Garvão e o intermitente posto da GNR.

Na terceira cintura,  a este da ribeira de Garvão, as ruas, relativamente largas e geometricamente organizadas em torno dos dois largos, Palmeira e Amoreira, são o fio condutor das habitações que se espraiam pelo vale, preenchendo-o. Os quintais frescos deixam escapar o verde das árvores, numa espécie decontinuum ecológico, visível do alto do Cerro do Castelo. Dali avista-se também a Sardôa, uma rua que aponta ao nascer do sol e guarda na memória os seus habitantes de pé descalço. A Sardôa, com 1km de comprimento, alarga-se lá adiante, para dar espaço ao bairro social, ao campo de futebol, à praça de toiros e à feira de Garvão.

A vila asfixia, com o desaparecimento da sua indústria à cerca de quatro décadas. As fábricas de moagem e de cortiça transferiram-se, respectivamente, para Alhandra e Montijo. Levaram as pessoas. As indústrias artesanais fecharam portas. A estação de Garvão encerrou. A estação da Funcheira acompanha o declínio dos caminhos-de-ferro, mas tem a particularidade de ser paragem obrigatória, por motivos técnicos, do inter-cidades.

A actividade industrial regressou recentemente a Garvão com a instalação de uma fábrica de transformação artesanal de porco alentejano, localizada na continuidade da rua da Sardôa, junto à estrada nacional. Uma quarta cintura,recente e ainda pouco consequente, parece querer crescer, em várias línguas, também junto à estrada. Um sinal?

A história de Garvão demonstra a importância das vias de comunicação e do reconhecimento político no desenvolvimento económico das pequenas localidades rurais. O primeiro foral deu identidade à terra. O foral manuelino permitiu, durante vários séculos, a actualização da vila, com lugar próprio e a par do desenvolvimento do resto de Portugal. O caminho-de-ferro foi uma inestimável mais-valia que possibilitou a instalação da indústria, um inputeconómico que veio incrementar substancialmente a população de Garvão durante a primeira metade do século XX. A existência de serviços comerciais e sociais completaram a condição de sustentabilidade na vila de Garvão.

Tiremos a lição!

Fernanda Cunha/Agosto2011
(Artigo publicado no jornal Costa a Costa, Edição 72, de 14 de Setembro de 2011)

Sem comentários:

Enviar um comentário