quinta-feira, 2 de julho de 2015

A extinção de freguesias e os perigos de um Portugal apolítico










Perante a grave situação económica e financeira que Portugal enfrenta neste momento, a resposta dos nossos políticos profissionais passa apenas pela via económica, esquecendo-se que os Estados não são propriamente empresas mas sim organizações democráticas, ou por outras palavras, organizações políticas. Esquecendo-se que a economia é estimulada pela política. Esquecendo-se também que os direitos democráticos e os direitos de cidadania estão associados, e que a cidadania política não é possível sem os direitos sociais iguais para todos (o direito à educação, à saúde e aos serviços sociais). Parece tender agora para o esquecimento de que essa igualdade advém da existência de serviço público.
Não vou abordar a possibilidade de extinção das pequenas freguesias pelo prisma financeiro porque desde logo a fatia do Orçamento de Estado que coube às freguesias em 2011 correspondeu a 5 cêntimos por habitante/dia (dados da ANAFRE), e porque o estudo da Universidade Lusíada comprova a eficácia das freguesias que a baixo custo conseguem grande benefício, apresentando uma relação custo/benefício incomparável com qualquer outra actividade da Administração que utilize os recursos financeiros públicos. Por exemplo, a freguesia de Garvão, com cerca de 700 habitantes, assume as suas responsabilidades sociais, profissionais, políticas e financeiras com um orçamento mensal equivalente ao vencimento mensal dos dirigentes de 1º grau e 2.º grau da administração pública. De qualquer modo, as opções económicas resultam, em última análise, das opções políticas.
Também não abordarei a questão por via do quadro legal porque todos nós sabemos que a Lei muda, mais uma vez, de acordo com as opções políticas. No caso das ditaduras, dependendo da vontade de poucos, no caso das democracias, dependendo da vontade da maioria política.
Perante a irrelevância da esfera financeira e da esfera jurídico-legal nesta matéria, focar-me-ei sobretudo na extrema relevância do impacte político que tal decisão teria sobre nosso Estado democrático, organizado intencionalmente para ser um Estado democrático, embora ainda um pouco longe de uma cidadania política participada. A minha reflexão recai sobre a importância política das freguesias, com particular ênfase nas freguesias de âmbito rural.
Portugal é um país pequeno mas de grandes assimetrias geográficas que condicionaram a distribuição da população, concentrada mais a litoral e mais a norte. Deste facto, entre outros, resultaram as assimetrias sociais e económicas que até hoje não soubemos anular. Apesar destas assimetrias, a organização administrativa portuguesa foi desenhada no sentido de igualar a participação política de norte a sul, contrariando o que, ao longo dos tempos, foram os poderes sobre o território, detidos pelos senhores feudais (em Portugal o feudalismo foi contrariado pelo estabelecimento de forais aos povoados que ficavam, assim, dependentes directamente da Coroa), pelas ordens religiosas e militares, numa época mais distante, ou controlados pela ditadura fascista numa época mais recente. Das antigas Províncias de Salazar, inspiradas nas Comarcas Reais e que caracterizavam o Portugal rural de então, progrediu-se para os Distritos, que eram unidades de controlo administrativo e político do Estado. Com a conquista da democracia em 1974, o poder local ganhou a condição de igualdade política, que é um dos pilares da nossa democracia.


O poder político local, que surgiu depois do 25 de Abril, concretiza-se através das autarquias locais: a freguesia (que se ocupa fundamentalmente das pessoas) e o município (que gere o território municipal). Está prevista a criação de um terceiro nível, a região administrativa (que se preocuparia com os interesses regionais), mas não reuniu o necessário consenso para ser implementado. A democracia portuguesa realiza-se, assim, a três níveis, nacional, municipal e local, que se complementam, respeitando os 3 princípios constitucionais seguintes: o princípio de subsidiariedade, o princípio da descentralização democrática da administração pública e o princípio de aproximação dos serviços às populações. Importa referir que a legitimidade democrática das autarquias locais nasce de eleições, à semelhança do nível mais abrangente que é a Assembleia da República, e são, tal como esta última, expressões da democracia. 
As freguesias são a unidade deste sistema democrático. Os seus órgãos representativos são a assembleia (o órgão colegial que delibera) e a junta de freguesia (o órgão colegial que executa). Pela proximidade com o eleitorado, as freguesias são, por excelência, o órgão mais democrático de todo o sistema político português, pois resultam directamente do voto do povo, com quem partilham o mesmo território, a mesma identidade, o mesmo sentido de lugar.  
A igualdade política resultante deste sistema democrático é traduzida no seguinte: quer o indivíduo da cidade de Lisboa ou Porto quer o indivíduo da aldeia de São Martinho das Amoreiras, têm a mesma possibilidade de representação política local para as questões locais e têm também igual possibilidade de influenciar localmente a decisão em sede de assembleia. Ou seja, são ambos cidadãos com igualdade jurídica e política e igual possibilidade de acesso ao debate político local.  Este é o actual quadro da democracia portuguesa.
Segundo o texto do parágrafo 3.42 da Troika, uma trindade impessoal e apolítica, de matriz puramente económica, até Julho de 2012, o governo vai desenvolver um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número de municípios e freguesias. O governo implementará esse plano com base no acordo estabelecido com o FMI e CE. O texto diz ainda que estas mudanças, que entrarão em vigor no início do próximo ciclo eleitoral autárquico, vão melhorar o serviço, aumentar a eficácia e reduzir os custos.
Foquemo-nos na última parte do parágrafo. Não vejo como a redução do número de freguesias poderá contribuir significativamente para a redução de custos, pois os serviços, no futuro realizados à distância, serão bastante mais caros precisamente pela distância que se lhes acrescenta, e mais ineficazes pela centralização dos processos burocráticos num único ponto. Importa aqui sublinhar que as necessidades de apoio à população foram ampliadas por via do encerramento de serviços essenciais, como são os CTT, os centros de saúde, as escolas, as forças de segurança ou os vários postos de atendimento dos serviços públicos. À excepção das forças de segurança, são as freguesias que garantem todos os restantes serviços, pois as necessidades prementes e imediatas das populações, que na maior parte das freguesias a extinguir é envelhecida e com parcos recursos, não pode ficar sem resposta.
Foquemo-nos, agora, na questão política. O poder autárquico é uma das maiores conquistas da democracia portuguesa. Reduzir o número de autarquias será ferir de morte o direito à cidadania destas populações. Às perdas do direito à saúde, à escola, aos serviços públicos mais básicos, acrescenta-se agora a perda da possibilidade de intervenção destas populações na vida política local. Porquê? Porque a vida política, pura e simplesmente, deixa de existir naquele local. Que nome dar a estes cidadãos? Cidadãos de segunda? Será como regressar aos tempos medievais em que os povos contribuíam com os seus impostos, sem direito a discussão ou voto sobre os seus destinos e sem qualquer apoio social por parte dos senhores feudais.
Num país como o nosso, com forte tendência para a normalização pessoal e indiferença relativamente aos acontecimentos, acrescentar o desaparecimento do debate político nas freguesias, será ampliar o efeito da alienação e da abstracção das populações até ao limite. Estas populações deixarão de fazer parte do todo, que é o resto de Portugal. As freguesias morrerão pelo isolamento.
É importante ter em conta que as assembleias de freguesia, enquanto espaços públicos de debate político, cumprem o papel de mediação das populações e inscrevem a identidade da freguesia (do lugar) nas esferas políticas de nível superior. Esta inscrição dá-se apenas através da acção política, que acontece somente nos espaços públicos.  
O filósofo José Gil define os espaços públicos como espaços de diálogo e de comunicação, é um plano anónimo [porque imparcial e desinteressado] de expressão, de contaminação e de circulação de forças. O político acontece aqui. O resto é luta de interesses e rege-se pela regra do mais forte. Nessa luta dos interesses, as freguesias em relação ao país, são sempre as mais fracas. Da mesma maneira que Portugal em relação à Europa. E a Europa, neste momento, em relação ao mundo. Somos sempre os mais fracos. A nossa força estará na acção política.
Portugal carece de espaços públicos, que foram basicamente substituídos pela televisão e, mais recentemente, pela internet, o que torna vital a existência das assembleias locais onde o cidadão comum pode intervir e influenciar. As assembleias locais são praticamente o único reduto do espaço político ao alcance da participação efectiva das populações. São, por isso, importantes focos de coesão das populações e, por consequência, da coesão nacional. Acabar com as freguesias, uma que seja, é abrir buracos negros na coesão nacional. E sem coesão nacional, não há Estado.
Transformada em números ou estatística, a população local representará sempre despesa. A população será fácil de manipular e a sua aniquilação enquanto cidadãos, será fácil de atingir. O destino das aldeias, vilas ou cidades que deixarem de ter expressão política ficará ao critério de outros. Por processo castrador semelhante, mas a outra escala, será também este o destino do país que deixar de ter expressão política.
Da freguesia ao Estado português é tudo uma questão de escala. Preenchido pelas preocupações financeiras e rendido ao poder do capital que o acorrenta violentamente, sem garantia de resultados favoráveis na recuperação económica, Portugal caminha perigosamente para o vazio político. Portugal corre o risco de perder expressão política perante os seus parceiros. Nessa altura, não terá qualquer poder de intervenção na coisa pública europeia. Não contará para a discussão. De Estado soberano corre o risco de descer à condição de Distrito, com controlo administrativo e político exterior. Neste momento, já representamos simplesmente umadespesa. É o primeiro sintoma.
No país da não-inscrição de José Gil, inscrevo o método aplicado na Alemanha totalitarista de Adolf Hitler. O seu método baseava-se na anulação da distinção. Neste caso, aplicado directamente às pessoas e no exímio cumprimento da lei alemã, alterada em função do método. A lei alemã legalizou lentamente, ao longo dos anos que antecederam a 2.ª Guerra Mundial, a inexistência de uma igualdade jurídica e política que garantisse os direitos de um povo distinto. O método aplicou-se aquilo que jamais alguém poderia imaginar: ao próprio povo alemão. Morreram mais de 6 milhões de judeus.
No país da não-inscrição, recordo o romance Levantado do Chão de Saramagoque nos conta como o povo alentejano adquiriu a consciência política em tempos de ditadura e subjugação ao poder económico do latifúndio. Na altura, foi de pessoa a pessoa, através de segredos trocados por caminhos de mato, e de silêncios partilhados em salas de tortura. A consciência política foi ganhando lugar e força e as greves dos trabalhadores rurais desenharam o Alentejo no mapa político europeu, muito antes do 25 de Abril.
Actualmente, não é necessário escondermo-nos no mato, ou encontramo-nos clandestinamente num sótão perdido da cidade para intervirmos na vida pública. A democracia dá-nos esse espaço de participação política: precisamente nas assembleias que se pretende agora reduzir.
A afirmação da diferença, ou a distinção, é concretizada no território, nos lugares. A esfera económica (a primeira preocupação da actualidade) nasce da distinção agrícola, industrial, técnica, empresarial, científica, etc, nos lugares. E ela, a distinção, é sobretudo importante nos países pequenos porque é a única via para a sustentabilidade económica.
Da terra não se levantam só as espigas, levantam-se também os homens. Por isso, façamos ouvir as nossas vozes. A partir do Alentejo. Das bases para o topo. E do topo para a Europa. O nosso grito é este: a despesa pública não pode ser reduzida à custa da democraciaque é a força que nos sustenta enquanto país e enquanto cidadãos livres de plenos direitos.

Fernanda Cunha
Presidente da Assembleia de Freguesia de Garvão

[Manifesto apresentado no Debate sobre Extinção de Freguesias, que decorreu na Casa do Povo de São Martinho das Amoreiras, Alentejo, dia 18 de Junho de 2011]

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